domingo, 10 de dezembro de 2017

Das margens do Tucunduba às do Atlântico, 30 anos alvissareiros

Sei que nada será como antes, amanhã
[...] Alvoroço em meu coração
Milton Nascimento e Fernando Brant, em “Nada Será como antes

Eram garotos que escutavam Beatles e Rolling Stones e ainda buscavam alvoroço no coração pintado em mil tons de cores e néctares. Viviam ainda a adolescência, quando receberam a lista convocatória, pelas ondas do rádio, que deveriam alojar-se numa choupana - espécie de tapera, cabana -, às margens do rio Tucunduba, afluente do Guamá. Na bata rala, várias vezes costuradas e faltando botões, as certezas: caneta, papel, leitura, suor e o sapato carcomido pelos sonhos.
No começo era o silêncio: amorfo, vasto e cinzento. Depois foram sentando e se apossando de cada espaço sobre a madeira dura, a amassar os glúteos de ferro. Poucas salas de aula tinham refrigeração, e o calor equinocial aquecia a empreitada. Sentados na sala de aula ouvia-se o popopô dos barcos, cochichos e o desenho da ciência: da anatomia à fisiologia, do exercício da farmacologia à cirurgia, do estetoscópio ao martelo de Buck. Deixa estar que o silêncio foi dando vez a vozes e os grunhidos foram rompendo a timidez, transformando-se em amizades sinceras, grudadas ao pericárdio e à pleura.
E lá foram eles, seguindo mundo, a pegar carona na melodia do amanhã e enfrentar desvarios; só podiam pedir socorro e milagres, livros e mestres.
Chegou o canudo e aqueles adolescentes mudos e telepáticos agora tinham voz, escolha na mão e ideia na cabeça. Cada um pegou seu beco e se aprumou na estrada, mas sempre com rosas na mão esquerda - o lado do coração. Só esqueceram de avisar que o caminho era escalafobético, cheio de espinhos, piçarra e, quando chovia, se tornava escorregadio e lamaçal - porém, anímico, sempre anímico.
Mas o primeiro sol, de incógnito firmamento, começou a dourar a amplidão e, lentamente, revelava-se ao amor, o juramento. Havia o mergulho - escalonado, diga-se - para o interior dos artigos, livros e tantos alfarrábios por vezes transformados em pergaminhos e escrituras sagradas do deus Asclépio, caminhando em passadas curtas com seu caduceu, na busca da cura.  
Depois veio o contato com a fragilidade humana da ingloriosa doença, sem falar daquelas perdas que jamais se admitia. Abrir um peito para aliviar uma dor ou tomar um elixir para transformar sorrisos, sempre foram dilemas a ser enfrentado com a solvência das leituras e a audição dos mestres, transferida ao longo da jornada que veio pelas veias de Lucas, o discípulo, até a alquimia; de Ambroise Parè, numa primeira fase, até aos robóticos dias atuais.
E lá iam eles seguindo mundo...
Do estreito Tucunduba até se chegar ao Atlântico, sob a linha do equador, correram os 30 anos de hoje, à sombra do ontem. Daquelas margens plácidas, onde tudo começou, sob a sombra de uma choupana, muitos caminhos foram seguidos, mas a cama para o descanso sempre guardou um travesseiro macio, feito de penas de aves de rapinas, produzidas, de forma sustentável, no laboratório de cada neurônio incrustado nos fundamentos éticos e na determinação de Hipócrates, à sombra dos plátonos - sem desmerecer as noites sem sonos, ao lado da próxima hemorragia e morte.
Nesses dias de rememoração e de revigoro, entre passeios e a flambagem do alimento nosso de cada dia, a poção ecumênica foi guardada, em forma de agradecimento, pelos cordeiros de Deus, tragado pelo desejo inesgotável existente atrás dos olhos de cada um.
O encontro al mare trouxe a maré, a brisa da noite e a certeza que a vida deve ser festejada como se fosse marujo à espera do próximo porto, na pérgula da piscina, em torno do fogo ou sob meia dose de caipirinha para se dançar até exaurir a última mitocôndria, feito meninos que perderam o juízo da maioridade antes de ganhar o juízo final.