quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

O nomadismo da cirurgia

“(...) todos os curandeiros eram malditos sanguessugas que faziam mais mal do que bem...”
Do personagem Bukerel em O físico, de Noah Gordon

Rob Cole é um órfão inglês que, após a perda dos pais, torna-se um assistente de curandeiro e deseja vencer a doença. Depois de adulto ouve falar de uma fabulosa escola de medicina na Pérsia, liderada por Avicena, para onde viaja a fim de aprender os segredos da cura. O cenário é da Idade Média e está romanceado em O Físico, de Noah Gordon. Nota-se que o termo físico servia também, à época, para designar os médicos.
Diego Rivas é um cirurgião espanhol da Galícia que, após visitar os EUA, toma confiança em realizar operações complexas mediante única mini-incisão (uniportal). Abraça a técnica operatória, passa a divulgá-la no mundo médico e ganha devotos. Depois dos 40 anos, comemorados no Brasil, ouve falar da escola de cirurgia da China e, em pouco tempo, estará num hospital de Shangai, onde foi aninhado. A intensa prática o levará a se aprimorar e, pouco depois, passa a ensinar sua técnica, mundo afora.
A pretensão aqui não é contar, com precisão, tópicos da cirurgia contemporânea, mas tão somente narrar a grande aventura de um nômade que, dos caminhos de Compostela, segue para o oriente, em época onde fronteiras estrangeiras fecham-se com trancas de castelo medieval, sabendo-se que a China de hoje, além da riqueza industrial, tem outra maior que encanta: o saber.
Da saga do jovem Rob, vê-se certo paralelo de poucos homens que ainda ousam, nos dias de hoje, romper fronteiras. Isto nos faz crer que a muralha da China tornou-se apenas ponto turístico em meio à tênue linha do passado da lembrança da divisão das estepes. Os chineses de hoje abordam com grande propriedade e leveza a partilha de ensinamentos, tal como o persa Avicena, personagem de Gordon.
Usando figuras reais que se tornaram mito - como o próprio Avicena-, Diego procura desvestir-se de um possível olhar maniqueísta ocidental, para traçar um panorama da riqueza cultural e social não só da China, mas de outros tantos lugares que visita – muitas vezes o Brasil –, para mostrar as origens do eterno aprendizado entre os povos, independente de suas idiossincrasias e tez racial. Isso o possibilita mesclar sabedoria com abraços fraternos.
Sem deixar de apontar as origens antropológicas de cada elemento que edifica a formação do cirurgião moderno, Diego transfere para cada aprendiz de sua técnica o mesmo olhar com que o sábio Avicena fita Rob Cole, mistura típica de fascínio que acomete qualquer pessoa que abandona seu húmus e seu modo de pensar, para se pôr de pé diante de outra sociedade.
No meio desse caldeirão, o cirurgião-nômade tempera todas as questões filosóficas e dados históricos com as cores e os cheiros do mundo, deixando os temores de lado a cada caminhada, sob a epiderme de Rob Cole.
O nomadismo de Rob e os ensinamentos de Avicena convivem no mesmo paletó de Diego, que faz de seus périplos pelos quatro cantos um tempo histórico num templo vivo e presente no imaginário coletivo de seus séquitos, que também passam a visitá-lo entre a Galícia, seu umbigo, e Shangai, sua Pérsia.
Lembremos das lendas da Távola Redonda e dos cavaleiros de armadura para nos debruçar sobre o fervilhante caldeirão cultural no qual os homens d’antanho se fitavam serenamente. Depois vieram os diálogos entre Dom Quixote e Sancho, até se chegar aos embaraços criados, hoje, por aqueles que travam a troca do conhecimento. Diego afugenta tudo isso, pois é personagem encantado e vivo, que parece sair das páginas da literatura rútila. É um desses que duvidamos poder existir, mas que convive ao nosso lado, nestes tempos arredios e de olhares atravessados.
O Diego de hoje se veste de Rob Cole para sentar na poltrona e esperar as portas travarem para decolagem. Assim que aterrissa reverte-se em Avicena e passa a ensinar pela luz da convivência, não importando o que esteja no foco daquele que busca extirpar, suturar, aliviar ou curar, seja horizonte amplo ou campo estreito, seja olhar grande ou pequeno.

Roger Normando – Professor de Cirurgia Torácica, Universidade Federal do Pará, Brasil.