A
humanidade começa nos que te rodeiam e não exatamente em ti.
Valter Hugo Mãe, escritor angolano, em: “A
desumanização”
Já se era Lisboa, descida do castelo de são Jorge, no fluxo dos vagões
que bucolizam a velha capital lusa, por onde transeuntes se misturam com turistas e
se esbarram pelas calçadas estreitas. Na descida já se tinha uma ideia do que se
enfrentaria: um calor de tostar o toutiço. para isso, nada melhor que um gole da Sagres
para equilibrar o pH de um flaneur.
No caminho
a noticia do jornaleiro: "mãe é presa por deixar dois filhos em cativeiro por
oito anos."
Então
paramos eu e Charles Dickens no primeiro quiosque, ao pé da ladeira, sob a
sombra de uma árvore frondosa. Pagamos um euro por cada copo e sentamos. A cerveja
descia suave, a relembrar o alentejano da noite anterior harmonizado com
bacalhau lá pelas curvas da Marquês de Pombal.
Estávamos
degustando e já ensaiando maquinalmente o segundo pedido quando subitamente sofremos
um duro golpe: alguém bate na mesa, tomba e a cerveja é nocauteada antes do gole
final. Fora um miúdo de cerca de 10 anos de idade que involuntariamente deu a cotovelada na mesa e gerou o pequeno acidente. Nada demais pelo ato em si, mas
a mãe aturdida e sem umbigo disse ao miúdo, no sonoro português de Portugal,
que conversaria em casa sobre aquele estorvo. Ela ameaçava-o vorazmente apontando dedo no rosto. Deu-nos
a impressão que o exército de Salazar fuzilaria aquele garoto. Ela não percebia
que ao pé do castelo o terreno é íngreme e o piso irregular. Qualquer movimento
seria capaz de causar incidente.
De imediato
a garçonete, uma rapariga loura, de pele clara, rosto e nariz afilados,
sugerindo traços do leste, juntou os copos e dispôs-se a nos repor, com juros altos, os
decilitros que regaram o solo. Retornou com o copo cheio. Claro que aceitamos, ora-pois, além da gratuidade, afinal de conta, já estávamos partindo para o segundo
tempo e a sede ainda não havia preenchido o imenso esforço de conhecer a
história dos mouros e o castelo de são Jorge, sob aquele calor que mais
lembrava o dos trópicos. Sentamos e cumprimos a segunda etapa sem direito à
prorrogação. Charles me chamou a atenção que a rapariga se sensibilizou mais com a perda líquida do que pela reação vaporosa daquela mãe.
Depois
descemos no rumo do Baixo-Chiado com a certeza de que vira um relâmpago saindo
daquela mãe. No caminho voltamos
a repensar sobre a atitude da mãe, punitiva com o filho e menos incapaz ainda
de nos pedir desculpas. Pensamos que fizesse parte do comportamento do lugar,
pois acabavam de se noticiar que certa mulher havia enclausurado seus filhos. A
foto do jornal escancarava a mãe na viatura da polícia, enjaulada.
Seria a vida uma luta de todos contra todos? Parecia-nos, pelo menos
por aquela conjunção de momentos mouros. Mas como se desenrola
essa luta numa sociedade mais ou menos civilizada, com a vertente europeia? As pessoas não podem atirar uma bala de fuzil contra
outras, mas aquele momento me pareceu provável,
mesmo tendo uma criança na linha de frente. Lançou-se,
ali, sobre o outro, o opróbrio da culpabilidade. Vencerá
aquele que conseguir tornar o outro culpado? Perderá quem
confessar o erro?
Seguimos pela rua mergulhados em pensamentos inconsoláveis, tentando
entender o que nos pareceu incompreensível; ou confirmando
que cada ser humano é o decalque do segundo o qual fora concebido por sua mãe. Caminhando
na direção da razão (ou para Santiago de Compostela), ainda cruzamos com
a garçonete, como se estivesse sozinha no mundo, sem
olhar para esquerda ou direita, nem para o cérebro ou o coração, preocupada apenas com os decilitros derramados.
Dickens me confessou que
foi a partir dali que criou Oliver Twist. Para mim, a partir dali, meu pensamento ficou perdido numa
rota imprevisível rodeado pela insignificância do meu perdão.
5 comentários:
Não somente imaginar... mas sim presenciar...assim me envolvo no relato.
Uma bela crônica, Roger!
Danem-se todos os limites possíveis ou plausíveis, que possam existir entre ficção e realidade, verissimilhanças inclusas e amarradas.
A realidade é que o miúdo existe nalgum canto de Portugal e pelos arredores do mundo inteiro. E há mães ferozes. E filhos semelhantes. E muitas tantas arbitrariedades nas trincheiras e descampados do mundo...
Felizmente o Dickens anda em tua boa companhia, como um amigo-velho imaginário, e pode presenciar, contigo, cenas como as tais relatadas.
Há decilitros difíceis de engolir, bem sabemos.
Felizmente há, por outro lado, literatura que desce gelada, matando-nos a sede de arte & reflexão & prazer & consciência & tudo o mais que se possa restar de bom neste planeta.
Ave!
Eu e vários conhecidos que tivemos algum tempo mais longo na Europa costumamos conjugar a ideia (genérica) de que nela não cabe - hoje - o exercício secular do humanismo. Há um grande discurso teórico que se perde (quase) completamente na práxis. Quando eu lá morava, muito me impressionava o número de pessoas idosas que morriam sozinhas em casa no verão. Hoje a xenofobia parece estar resgatando seu fôlego e reacendendo um nacional-socialismo ligeiramente com sabor de nazi-fascismo sem armas de fogo, mas em moeda sonante (Euros). Realmente, como diz um amigo filósofo: a Europa não é para fracos!.
Querido Abel, obrigado pelas carinhosas palavras e versáteis pensamentos. Na verdade quando você vive uma obra passa a andar de mãos dadas com seus personagens e com o próprio autor. Há os que escondem e há os que grifam tudo isso. Quem de nós não é Hamlet em tantos momentos da vida? Um grande abraço.
Petrus, lá pelas "zoropas" esse tipo de relação é mais comum (pelo menos não se esconde). Nós somos muitos "pasion" e isso é o que nos diferem um "poquito" mais do velho mundo. Acho que a sua resposta é bem acadêmica e corrobora com o pensamento filosófico. Mas temos que acreditar, pelo menos na psiquiatria, que isso é "pathos".
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