terça-feira, 5 de abril de 2022

As páginas solitárias da guerra


 
 A morte tece seu fio de vida feito do avesso

Dori Caymmi e Edu Lobo, na canção: "Desenredo" 

Caminhar por ruas estreitas e largas ou adentrar a shoppings parecem ações comuns dos reles viajantes em passeio. É ler de tudo. Natural que nos deparemos com imagens e propagandas para o chamamento a gastos: livrarias e livreiros é-me rotina. 

Assim adentrei em determinada livraria de Braga, Portugal, quando me deparei com o guia "Cultiva a saúde com livros". Na capa a linda jovem amontoa livros nos braços e põe um estetoscópio no pescoço. Fiquei a me perguntar como a imagem do estetoscópio aliado à leitura poderia salvar vidas.

 O editorial era sobre a guerra na Ucrânia. O guia relata que determinada jornalista recolhia depoimentos aqui e acolá, enxergava rostos aflitos e agitados, alguns chorosos e amargurados, tensos, inquietos, até que mais adiante observou uma jovem ucraniana com a cara num livro. Ao fundo percebia-se pó impregnado nos móveis de uma sala que aparentava ter perdido parte das paredes; ao redor muita agitação, relatava o autor do editorial. 

Em meio aos escombros deste fluxo contínuo e incontrolável de imagens televisivas e informação frenética sobre a tal guerra, numa amálgama de explosões e refugiados e feridos e mortos e soldados e testemunhos e discursos e opiniões e teorias e ruínas e mais refugiados e sirenes e bânqueres e choros e tiros e mais ruínas e tanques e mísseis e estratégias e apoios humanitários e refugiados. Tudo muito nervoso e angustiante, num desespero e desnorteamento sem fim. Assistir à reportagem de uma ucraniana calmamente sentada com um livro à sua frente, totalmente envolvida, abrigada numa cave enquanto decorria um ataque de mísseis, me deixou tonteado. À sua volta crianças choravam, mães carpiam e bramiam, outras rezavam com nervos à flor da pele. Os poucos homens que por lá estavam não paravam quietos, angustiados, sem saber o que fazer. O que se passava com aquela moça? As palavras dos demais saiam atropeladas, sem conseguirem conter-lhes o desvario e a ansiedade. Ela, plácida e serena, lendo um livro no alfabeto cirílico, alheia a toda aquela barafunda.

A jornalista se achega e pergunta-lhe o que está fazendo. Ela responde que está lendo, com certo ar de lógica. A jornalista, incrédula, imbuída daquele frenesi alucinado que de repente parece ter tomado conta do mundo, pergunta-lhe como consegue. A ucraniana, tranquila, com voz calma, explica-lhe que, quando ler, tudo o que a rodeia desaparece, que mergulha na história do livro e passa para outro mundo, esse onde decorre a narrativa, alheando-a dos medos e temores da guerra, dos horrores do presente. E diz isto com um quase sorriso, numa serenidade e bondade que contrastam vivamente com tudo a que a circunda, mesmo com essa excitação profissional de jornalista em situação de notícia. Depois cala-se e mergulha de novo na leitura. 


A jornalista continuou seu delirante inquérito, mas guardei esta leitura de pura lucidez em cenário de guerra, e agora já tinha como aliar ao estetoscópio: "a literatura é que nos pode salvar do manicômio".

Decerto os caminhos conhecidos da guerra não dão conta das agonias de seus filhos, pois há um futuro incerto acontecendo lá fora. Mas a vida pede um corredor humanitário e segue habitando-nos bem além das escolhas que fazemos.

Por mim, continuaríamos a ter asas pra brincar de passarinho em nossos sonhos e dar a mão a Deus, se ele quisesse passear numa praça em Kiev. Mais tarde, em qualquer boteco, poríamos o coração à mesa e celebraríamos a comunhão dos homens. 

Texto adaptado do escritor angolano Adolfo Luxúria Canibal e do poeta Corisco.

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