sábado, 28 de setembro de 2013

"Norte das águas": um mergulho no jazz de Hobsbawn

““O Jazz moderno não é tocado apenas por divertimento, dinheiro, ou requinte técnico: também é tocado como manifesto - seja de revolta contra o capitalismo e a cultura comercial, seja de igualdade do negro ou de qualquer outra coisa".
Eric Hobsbawn, em: “The jazz scena”, 1989.



Passado 40 anos da publicação do Saint Louis Blues (1914), o jazz tornara-se, de uma maneira ou de outra, universal. Desde então passou a ser quase uma versão de segunda mão da música americana, ainda que no cartório se discuta a paternidade - apesar de avôs africanos. A versão de sua evolução e transmutação, ao contrário de sua disseminação, permanece como um tesouro mergulhado no delta do Mississipi e nem Eric Hobsbawn, famoso historiador inglês, vestido de escafandrista conseguiu localizar.
Hobsbawn (História Social do Jazz, Ed. Paz e Terra, 1989) dedilha que o Jazz moderno inicia em 1940, após a retomada da improvisação e a ruptura definitiva do blues com o pop. O blues, doravante, foi a gota inseminada no momento da fecundação do jazz, e o tal “improviso” foi gênese dessa relação assexuada.
Após a gestação, o som afro-americano (afro-humano, afrodisíaco, diz Almino Henrique) abandona o ventre, corta o cordão, enterra as secundinas do folclore e dá os primeiros passos para sair de seu gueto: Nova Orleans. De cara mistura-se com a música clássica; depois inicia peregrinação mundo afora para se juntar a outros elementos fonográficos e tornar-se o híbrido tanto trovejado por Louis Armstrong. Após o princípio, lá pelas quebradas do French Quartier com os negros tocando em funerais, o Jazz sobe o Mississipi no rumo norte e aporta em Chicago e Nova Iorque. Daí rodopia para o mundo até encontrar os mais insipientes rincões.
No delta do Amazonas, um desses rincões nebulizados pelo Jazz, você pode se inteirar de algumas fímbrias dessa protoplasmática história musical caminhando pela orla de Macapá. “Do blues urbano e imigrante, permaneceu o background constante da evolução do jazz” -aferiu Hobsbawn. Então porque esse background, uma espécie de miolo, néctar, não haveria de estar entre nós, nutrindo marabaixo, carimbó, batuque, boi-bumbá e outros elementos fonográficos da Amazônia dando perpetuação ao ideal de Chat Baker, Miles Davis e Duke Ellington?
A idéia do imutável som quintessencial de negros urbanos espalhou-se pela floresta feito alvorada de Uirapurus. Tão logo as ondas da maré alta do rio Amazonas se chocam contra os muros de contenção da cidade musical surgem blue notes que viajam entre nossos ouvidos, até inundar as circunvoluções cerebrais de serotonina e causar uma enxurrada de êxtase.
Finéias (teclados) e seus menestréis
Se numa quinta-feira qualquer você quiser apalpar um pedaço dessa história a céu aberto, - contando estrelas, ao lado de um vento brejeiro e sem chuva-, pegue a orla de Macapá e caminhe até o Araxá. Achegue ao “Norte das águas”, puxe a cadeira, sente-se e sinta-se na esquina da rue Bourbon com St. Peter street. Peça uma cerveja e um tira-gosto pro Adriano e aguarde a chegada de uma espécie de “Original Dixieland Jass Band”, nos mesmos moldes da Nova Orleans pós-Katrina, com Finéias e seus menestréis. Depois dê o formato de concha à sua mão e a encoste-as nas cartilagens da orelha. É só deleite, ou melhor: total ruptura com o capitalismo da cultura comercial.
O “Norte das Águas”, por assim dizer, comporta-se como um verdadeiro Tin Pan Alley ao receber de abraços aberto quem deseja voar na liberdade da expressão musical, ou, no improviso e na espontaneidade de se tocar um instrumento.
Os idealizadores desse projeto são tão amarrados por esse revival, que anualmente realizam um festival neste mesmo cantinho, com diversos convidados nacionais, para manter viva essa história que os remete ao Mississipi. É claro que não se precisa de nenhum palco armado, pois a natureza foi bondosa com a cidade e deixou esse “mar” aberto e repleto de verde (I see trees of green [...] What a wonderful world), dando à paisagem bucólica um ar de originalidade.
Mesmo de canoa, a ideia bem que poderia ir rio acima, nos mesmos moldes do Mississipi e borrifar jazz em toda a região. Mas aí é outra história... Já sem Hobsbawn para escrever. 

2 comentários:

Dudu Neves disse...

Enternecido por suas linhas, já apossado e sentindo a brisa do amazonas ressoa esse o som em mim, mesmo no virtual. Na descrição desse cenário detalhado sorvo minha cerveja em companhia dos mestres e, digo: o jazz é um estado da alma. Bisado ao lado de Gizzy, Holliday, thelonious monk, Chet, Finéias e seus menestréis peço outra ao garçom e brindo: Viva o Jazz !!!

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Dudu, além do estado de alma, como bem disseste, "não é um estado autocontido ou imutável. Não é uma linha divisória, mas uma vasta zona fronteiriça que o separa da musica popular comum, em grande parate marcada pelo jazz e a ele misturada com vários níveis [tal como o Finéias faz com o Carimbó, Marabaixo, etc]. Na verdade não há um limite fixo que o separa dos tipos anteriores de música folclórica, das quais emergiu"