"Quer durar,
quer crescer,
gente quer luzir..."
Caetano Veloso, em: "Gente"
Nasci pedindo “por favor”, pois
precisava não só que o ar entrasse pelas narinas, mas também bisbilhotar a vida
com os olhos do céu. E deu no que deu, pois a primeira noção foi que o céu era
amarelo-âmbar, tal como aquela luz que saia daquele foco fosco presente na sala
de parto. E que diferença isso faria para ter o nascimento registrado? Ficou lá
pelas brenhas do Acre minha rescisão de contrato com o útero de minha mãe.
Antes mesmo de nascer li não sei onde que o bom da vida
era ter amigos para fazer gols de bicicleta, monareta para pedalar pelas ruas e
algum dinheiro para cruzar oceanos; também uma namorada para andar de mãos
dadas com o anoitecer do Rio de Janeiro, e ter filhos para sentir dessas
emoções de fibrilar o coração.
Mas é história de filho que a gente
gosta de contar pros cadernos, dessas de sentir a cororonária se contorcer e
depois fazer um cateterismo para ver se aguenta mais tranco.
Hoje, domingo, acordei cedo, acabei meus
afazeres e fui deixar um dos filhos numa escola do subúrbio, para fazer a prova
do ENEM. Ele já é um veterano para essas emboscadas, mas me pediu para fazer
este carreto uma vez mais. Quer tentar o ensino público superior num curso
disputadíssimo. Eu não pedi e nem apelei. Foi de boa, pois já faz duas
faculdades que mal consegue dar conta.
Mas ENEM, de novo? Sonhos. Desafios.
Inquietudes. Ele não respondeu assim, mas eu criptografei pelo wifi, cujas
ondas circulam entre seus olhos castanhos e a minha massa cinzenta.
Enfrentamos grande engarrafamento, mas
chegamos a tempo. Afinal, onde ele fez a prova, numa escola do Guamá, tem certa
vizinhança geográfica com seu desafio e a distância e não faz diferença para
quem deseja a satisfação de ouvir a voz do Pinduca no rádio.
No caminho de volta, após desejar boa sorte
e dar um beijo na fronte, revivi toda a trajetória de sua infância de todos os
dias, durante vários anos: acordar cedo para prepará-lo para ir à escola - do
banho ao calçamento dos sapatos. Achei que aquele ato rotineiro tivesse ficado
no fundo da minha caixa de pandora e que jamais aquilo pudesse me emocionar.
Sim, me emocionou, hoje.
Sim, pelo que, ele, com a vida acadêmica definida,
resolve voltar e recomeçar novamente, ao sol do meio-dia de despelar o
toutiço.
Vi-me um pouco, ali. Vi também os primos enfrentando
a disputa, naquela vontade formigante de estar envolvido no conhecimento e
encarar os desafios de um Quixote diante de moinho de ventos. Existe, sim,
nele, uma espécie de comichão que dá brotoeja e faz todo menino querer ser
gente de cidadania.
E neste exato momento da volta – eu,
sozinho - a rádio do carro toca Caetano: “Gente é pra brilhar, não pra morrer
de fome.” A musica se engancha em encantamento, fosforilo e, desatento, quase atropelo
um feirante da Barão de Igarapé-Miri.
O caminho de volta foi ardente. Tive a
sensação que jovens deste tipo têm sonhos que dormem num prato fundo e
necessita de muito feijão pra saciar todo aquela marmita. Continuarei, por
todos os sóis de meio-dia, a carregar em punho essa marmita, na sã esperança de
que valeu a pena ter a placenta rompida num espasmo daquele chão sob a luz
amarelo-âmbar daquele foco frágil daquela sala de parto. Acho que o tal foco
fez-me confundir a cor do céu, que eu havia lido num poema de Fernando Pessoa
ainda na barriga da minha mãe.