Como se não bastasse a curiosidade pela idade, a curva anteriorizada da espinha me afogou. Era em torno de 45 graus, ou seja, caminhava olhando para o chão. Olhar para frente caber-lhe-ia um sacrifício grande, por conta da rigidez do pescoço. Ela não demorou dois minutos naquele pequeno espaço. Depositou alguma moeda, arrodeou, e completou a volta em torno do São Gonçalo sepultado, talhado em madeira. Passou a mão, agradeceu, fez o sinal da cruz e saiu com sua bengala tosca, já bastante desgastada.
Meus olhos continuaram acompanhando seu caminhar curvilíneo. O vigia, da porta de entrada percebeu meu olhar grudado nela. Ele era um indivíduo esguio, com roupas escuras, encostado à porta, sob uma luz parda; o calor flamejava lá fora. No silêncio vinha das ruas mudas, assim como o sol, que tangenciava meu olhar, se expressava e recolhia minha pupila. E O homem homem me olhava. Tinha linha magra e expressão engelhada do rosto. Um evidente desalento. O cabelo comprido, caído sobre a gola da camisa, era manifestação de um papa-hóstia, e toda a sua magreza se confundia com aquelas pilares arquitetônico, à meia luz.
Ele tomou a minha direção. O que fizera eu? A sua fisionomia facial era de um rosto longo e triste, muito moreno, de nariz mouro e uma barba curta e frisada - de Cristo em estampa romântica; a testa era destas que, em boa literatura, se chama fronte: larga e lustrosa. Tinha o olhar encovado e vago... E que magreza! Quando andou em minha direção, a calça curta torcia-se em torno da canela como pregas de bandeira em torno de um mastro; a aba do chapéu, comprida e aguda era grotescas. Recebeu minha curiosidade num tédio resignado. Um verdadeiro personagem dos contos de Eça de Queiroz, que eu lera na noite anterior.
Passou a mão pela
testa com um gesto errante e dolente e disse, sem que eu pedisse, numa voz
cavernosa: “ela nasceu em 1928. Está casada há 67 anos e nunca deixaram a
aldeia que os viu nascer, próximo dali. Já viu muitas coisas. Há relatos até de
ouro. Já houve outro café; já houve restaurante; já houve escola primária, já
houve parreiras. Naquela aldeia, lugar de arvoredos, ouve-se ‘já houve’ muitas
vezes, em muitas vozes - demasiadas vozes. Já houve mais gente. É a evidente
desertificação de Portugal. Aquele local contabilizou cinco nascimentos no ano
passado. É uma terra a se encolher no planeta. Nasceram cá e cá morrerão. Nunca
emigraram. Nunca saíram dali. Conta-se: foi uma vida de muito trabalho na
lavoura, por isso, nunca passaram fome. Só comem alimentos orgânicos. Já houve mais buliço na aldeia deles, porém hoje
impera calmaria. Aos domingos fica passeando entre o casario e pequenas vielas,
atenta aos nomes das ruas. Aprecia ardósias, que servem para cobrir as casas e
as placas de xisto, até chegar à igreja de São Gonçalo. Ela vem para ser
abençoada por São Gonçalo, o santo casamenteiro, e sempre deixa uma moeda de agradecimento.
Meu olhar foi
ficando vazio. A cada frase, mais distante. Até que ele finalizou, após eu
começar a me deliciar naquela história. Minha esposa chegou. Saudou aquele
homem.
- Tem uma moeda, aí? Perguntou ele.
- Sim! ela respondeu.
Depois seguiu
para o mesmo sepulcrário de onde saiu a idosa. Deixou lá a moeda doada, e desapareceu pela mesma porta que entrou a idosa. Meu casamento se
curvou a São Gonçalo.
Viajar inunda-nos
de paisagens. Põe em banho-maria os barulhos e dá voz aos silêncios. Silêncios
puxam idéias...