domingo, 18 de janeiro de 2009

Novas considerações sobre o caso Battisti

O caso Battisti atrai, efetivamente, considerações as mais diversas. Da Carta Capital, trago a lume o editorial que segue, contrário à posição assumida pelo ministro Tarso Genro e o qual subscrevo. Segue o texto, com grifos meus:

O ministro da Justiça, Tarso Genro, ao conceder asilo político a Cesare Battisti, entende que a Itália é um país sem lei e sem justiça, ali não vigora o Estado de Direito. Os fatos indicam outra situação, inclusive que a Constituição italiana de 1948 é uma das mais resistentes do mundo.

Inúmeros filmes mostraram criminosos que fogem para o Brasil para escapar à cadeia. Todos, salvo melhor juízo, mais simpáticos, ou menos perigosos, do que este Battisti, condenado na Itália, por ter sido autor de três homicídios e mandante de outro, em nome de ideais políticos inconsistentes. Como diz Omero Ciai, no La Repubblica, rapina à mão armada, seguida pelo assassinato do rapinado, é crime comum “mesmo quando é cometida com a justificativa de financiar um grupo eversivo, ou de oposição política”.

“Os advogados de Battisti – escreve Ciai –, entre eles Greenhalgh, ligado ao PT do presidente Lula, conseguiram eludir o terreno perfeitamente jurídico, ao organizar sutilmente uma entrevista de Battisti ao semanário Época e ao recorrer ao único argumento destinado a salvar o ex-líder dos Proletários Armados, a ideia de que na Itália funcionam hoje estruturas ilegais e a vida do entrevistado corre risco. Aquilo que por aqui foi tomado como brincadeira risível no Brasil fez a diferença.”

O ministro Genro empenhou-se para entender se aparatos ilegais na Itália do final dos anos 70 tinham ligações com a Máfia e a CIA. Ignorância pura ou má-fé?

Enquanto o terrorismo assassinava Aldo Moro, ou explodia a estação ferroviária de Bolonha e matava mais de 80 inocentes, o Partido Comunista atingia seus melhores índices eleitorais e a ideia do compromesso storico tornava-se viável. Sem meios-termos a esquerda condenava o terrorismo, combatido eficazmente pelo Estado sem invocar e aplicar leis de exceção. Isso tudo é do conhecimento até do mundo mineral.

O argumento de Battisti ter sido julgado à revelia é, sobretudo, estulto. Battisti fugiu e, no Brasil e na Itália, as leis autorizam o julgamento à revelia. Tal argumento, se aplicado pela Justiça brasileira, apagaria os antecedentes criminais e anularia condenações aos milhares. A lembrar algumas aulas básicas de processo, com relação à revelia, recordaríamos que uma nova lei processual não retroage.

Vale acentuar que na Itália, com exclusão de uma ex-brigadista-vermelha, recentemente encarcerada, e de Marina Petrella, também integrante da linha de frente das Brigate Rosse (teve a extradição determinada pela Justiça da França e esta não se efetivou por questão humanitária, ou seja, por grave estado de saúde), nenhum condenado está preso. Todos, por cumprirem parte da pena, receberam benefícios. Muitos dos ex-brigadistas lecionam em universidades, e um deles foi assessor do ex-premier Romano Prodi. Aliás, foi Prodi quem solicitou, na condição de chefe de governo de centro-esquerda, a extradição de Battisti, junto ao nosso Supremo Tribunal Federal.

Por outro lado, espanta o desconhecimento de questões elementares. O ministro Genro afrontou uma decisão soberana do Estado italiano e, simplesmente, a desvaloriza por entender estar baseada em “leis de exceção”. Quanto a estas, o ministro Genro as confunde com emergências geradoras de reformas legislativas, por Congresso eleito pelo povo. Por acaso, as leis brasileiras, modificadas em razão dos ataques do Primeiro Comando da Capital (PCC), ou a sobre crimes hediondos em face da escalada da criminalidade, são leis de exceção? Lógico que não.

Não competia a um ministro da Justiça brasileiro cassar, desconsiderar, valorar como nula, decisão da Justiça italiana. A propósito, destaca Genro ter sido Battisti acusado por um parceiro que se tornou colaborador da Justiça e era testemunha única. No Brasil, como na Itália, vigora o princípio do livre-convencimento do juiz. A medieval regra da prova tarifada, testis unos testis nullos (testemunha única causa testemunho nulo) não se aplica há muito tempo. Ainda: o Brasil importou da Itália o instituto da delação premiada.

Cabem, enfim, umas perguntas. Tarso Genro, que sempre mereceu o apreço e o respeito de CartaCapital, teria sido submetido a pressões irresistíveis? Mas quem teria condições de exercê-las? Por mais que nos esforcemos, só conseguimos enxergar os resistentes de uma esquerda saudosista e obsoleta a trafegar entre a festa e o corporativismo.

À questão última do texto da Carta Capital acrescento que o Comitê Nacional de Refugiados (CONARE), ligado ao Ministério da Justiça, vetou, por maioria, a concessão do asilo. Como órgão meramente consultivo, sua posição não precisava ser assumida pelo Ministro da Justiça. Mas a decisão colegiada me parece ser mais legítima que aquela solitariamente adotada pela autoridade deliberativa.

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Corrigido às 21:33hs
Contrariamente ao que afirmei, o CONARE não é órgão consultivo. Na verdade, a decisão do Ministro da Justiça veio em decorrência de recurso dos advogados de Battisti contra a decisão do Comitê. No entanto, a correção não atinge o mérito da postagem, que mantenho intato.

7 comentários:

Itajaí disse...

O velho e bom Mino iconoclasta. Gosto dele. Mas nunca é demais lembrar: quem luta com monstros, corre o risco de se tornar um igual.
Digo isso pela referência ao caso Aldo Moro, primeiro-ministro da democracia cristã italiana de fato assassinado pelos brigaditi rossos. Entretanto - eis a tragédia da História! - enredos podem ser construídos de variadas formas sem que os que o fazem ponham suas assinaturas indeléveis.
Apesar da mão assassina das Brigadas Vermelhas, indícios bastante convincentes existem de que houve uma conspiração para que se chegasse ao termo do cadáver ilustre. Gente do governo italiano dizem.
Dois fantásticos filmes políticos foram assinados por diretores italianos e merecem ser vistos:
Bom dia, Noite (2003) de Marco Belochio (Diabo no Corpo);
Aldo Moro - Herói e Vítima da Democracia (Marco Ferrara);
A praça das Cinco Luas (Renzo Martinelli, 2003).
Por fim uma crítica pétrea à crítica de Carta Capital: é uma cafajestice nivelar crimes políticos à crimes comuns para fazer valer a argumentação sobre um assunto polêmico. Nem a mais direita da extrema-direita ousou tanto. Mas, enfim, esses são os tempos, os costumes.

Francisco Rocha Junior disse...

Itajaí, mantendo nossa divergência, não vejo onde a Carta Capital tenha nivelado crimes políticos e crimes comuns. Talvez tu fales da afirmação, que grifei, sobre a existência de crime comum na hipótese de atos ilegais que visam financiar atos políticos futuros - o exemplo brasileiro dos assaltos a banco na época da ditadura militar de 64/85. Quanto a isto, ressalto mais uma vez que a Itália não vivia nada igual ao regime brasileiro.
Sobre a tal conspiração envolvendo o próprio governo italiano para o assassínio de Aldo Moro, o que existe é a afirmação de que o governo pouco fez para negociar sua liberação. Mas isto não foi provado; ficou na suposição. Já a responsabilidade das Brigadas Vermelhas não: elas assumiram o crime.

Itajaí disse...

Francisco,
Fundamentei o argumento na edição eletrônica da Carta Capital:
"O ministro Genro afrontou uma decisão soberana do Estado italiano e, simplesmente, a desvaloriza por entender estar baseada em “leis de exceção”. (...) Por acaso, as leis brasileiras, modificadas em razão dos ataques do Primeiro Comando da Capital (PCC), ou a sobre crimes hediondos em face da escalada da criminalidade, são leis de exceção? Lógico que não."
Quanto a sua afirmação "a Itália não vivia nada igual ao regime (militar) brasileiro" pode ser correta por uma simples razão: nós e o Chile já tínhamos feito um hediondo "dever de casa" golpista, quando Aldo Moro foi assassinado em 1978.
Mas a democracia-cristã italiana não poderia sonhar que esticaria a corda do que por enredo exigia endurecer no contexto da Guerra Fria; quando o bloco da OTAN era fustigado pelo alemão Baader Myhoff na Alemanha, as Brigadas Vermelhas na Itália, além dos nacionalistas da Irlanda, da Espanha e dos grupos terroristas árabes de que é símbolo o assassinato de praticamente toda a equipe olímpica de Israel nas Olimpíadas de Munique, em 1972.
Não acabou em pizza, é claro. O meia boca que os italianos ensaiaram com Hitler não funcionaria com os falcões do Departamento de Estado e da CIA. Para responder a pressão crescente seria necessário endurecer, ainda que o fosse de um modo europeu, civilizado, nada comparável com o açougue das ditaduras do Cone Sul de LA, que hoje estão aí, chamadas para responder por seus excessos no trato com os inimigos políticos.
Para dar cabo da tarefa, na Europa usaram de todo o poder conjugado dos orgãos de espionagem e contra-espionagem e de uma criatividade legal (inclusive secreta, como aquela história de abrir o espaço aéreo aos americanos para trânsito e interrogatório de prisioneiros secretos em bases secretas, por tempo indeterminado, que aliás tem DNA de "sobrinha temporã" da Operação Condor).
Nesse contexto que importaria o cadáver ilustre do ilustrado, da reserva moral do democrata-cristão Aldo Moro, se havia quem o dispusesse a matá-lo e assumir esse crime em nome de uma revolução que tal qual as contra-revoluções não se faz com flores?
As Brigadas Vermelhas o mataram conforme se lê em qualquer manual de história contemporânea européia, tornando Aldo Moro um insepulto na consciência nacional.
Porque terá sido assim tão corriqueiro, quando sabemos que na política nada é tão linear, principalmente quando envolve assuntos tão graves e níveis decisórios tão hierarquicamente superiores?
É disso que tratam os filmes que te sugeri assistir.

Anônimo disse...

E quando a Justiça Italiana impediu a extradição de Salvatore Cacciolla, um criminoso, cá pra nós, bem pior que Battisti, aí prevalece a soberania italiana sobre os zilhões roubados aqui no Brasil ( quantas mortes não seriam evitadas por aqui com o que ele roubou?)? Por que a Itália pode afrontar o Brasil e o Brasil tem que dizer amém aos desejps italianos?

Francisco Rocha Junior disse...

Caro,
Localizei-me. O argumento a que fazes referência é realmente ruim. Aliás, é péssimo. Mas, na realidade, não é o argumento que é ruim; o exemplo, sim, é que é infeliz. Só que não é da Carta Capital, e sim do Walter Maierovitch, e está na íntegra no blog dele, na página do Instituto Giovanni Falcone.
Na verdade, o que o Maierovitch quis dizer é que o endurecimento das leis penais e processuais penais italianas, na época de atividade das Brigadas Vermelhas, não pode levar à conclusão de que aquelas leis eram de exceção, no sentido técnico do termo. Nisto ele tem razão, apesar, repito, do infausto exemplo.
Já ouvi falar muito de Bom Dia, Noite e li algumas resenhas. Vou procurá-lo em DVD, assim como o outro que indicaste.
Abraço.

Francisco Rocha Junior disse...

Das 11:37hs, sua comparação não procede.
Cacciola tem dupla nacionalidade e, tal qual a brasileira, a Constituição italiana proíbe a extradição de seus próprios cidadãos. Na nossa Constituição, por exemplo, há exceções a esta regra somente no caso de brasileiro naturalizado, em caso de crime comum praticado antes da naturalização, ou de comprovado (que pressupõe processo com sentença condenatória transitada em julgado) envolvimento em tráfico de drogas. Ou seja, se Cacciola estivesse sendo processado na Itália pelos mesmos crimes que cometeu no Brasil, ele também não seria extraditado daqui para lá. Logo, as situações são incomparáveis, repito.
Por outra, ainda que deplore o crime de corrupção e que este seja uma das causas comprovadas de nossa hedionda desigualde social, acho duvidosa também a comparação entre um crime de assassinato - isto é, tirar diretamente o bem mais protegido de qualquer sistema jurídico do mundo - e um crime de corrupção. Neste caso, também acho que seu exemplo não foi feliz, com todo respeito.
Obrigado pela contribuição ao debate. Volte sempre.

Anônimo disse...

Boa noite, Francisco e Itajaí:

eu não consegui ir adiante porque não consigo aceitar que o Mino ou alguém possa arguir " ideais políticos inconsistentes" qunado lhes convém.

Estou aqui me perguntando: quem referenda a "consistência"? O Mino, eu, vocês, o Tarso?

Entendo o asilo como ato político enfeitado pela correção - ou não- jurídica. Fundamentado nas leis internacionais, é passível de interpretação, como as leis o são. Concedido o asilo, a Itália que esperneie. Está no seu direito.

E o nosso ministro, de quem se espera que tenha tomado uma decisão discutida exaustivamente, que segure a onda.

Parece simples.

Abração procês.