sábado, 17 de janeiro de 2009

Outra visão sobre o caso Battisti

O maior prazer que sinto, ao escrever neste blog, é a possibilidade de confrontar minha opinião com outras completamente diferentes. Com isso, abrem-se portas para novos entendimentos, janelas para novas percepções da realidade.

Por vezes há aborrecimentos, quando os contendores veem nossas opiniões com maus olhos e querem, em lugar de debater, ironizar e empulhar a boa compreensão das controvérsias instauradas. Mas isto é coisa rara. Na absoluta maioria das vezes, grassa a boa contenda, o bom debate. E é isso o que quero aqui fomentar.

Nosso confrade Yúdice Andrade, no post Uma palavra sobre o caso Battisti fez a defesa da decisão do ministro brasileiro da Justiça, Tarso Genro, no episódio da recente concessão de asilo político ao ativista italiano Cesare Battisti.

Quero ter a parte do diabo neste debate: eu não seria tão veemente em concordar com a decisão de Genro.

Battisti fundamenta basicamente seus argumentos no fato de que a Constituição Federal veda a extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião, em regra que já era parcialmente prevista no Estatuto do Estrangeiro. Os crimes praticados por Battisti teriam sido de cunho político, e neste caso aplicar-se-ia a garantia prevista constitucionalmente.

Argumento complementar assevera que os processos aos quais Battisti foi submetido teriam tido falhas técnicas gritantes, aptas a garantir sua condenação.

Assim, os crimes cometidos por Battisti seriam políticos, porque tomados em um momento histórico em que a Itália vivia uma época de atentados e convulsão sócio-política.

É bom lembrar, porém, que tal convulsão ocorreu em razão da disposição das Brigadas Vermelhas e do próprio grupo PAC (os Proletários Armados pelo Comunismo), da qual Battisti fazia parte, de tomar o poder na Itália dos anos 1970 via revolução proletária – o que significava, obrigatoriamente, a adoção de uma postura violenta. O assassinato de Aldo Moro (um crime com autoria certa e motivação inequivocamente criminosa, na minha opinião) foi o ponto supremo desta época, que mudou a história da Itália para sempre. E a Itália, naquele tempo, não vivia regime de exceção, como o Brasil.

Sob este prisma, Battisti envolveu-se no assassinato de 4 pessoas, uma delas morta diante de seu filho de então 13 anos, Alberto. A vítima, Pierluigi Torregiani, era um joalheiro alegadamente envolvido com grupos neo-fascistas – uma acusação nunca comprovada, diga-se.

Assim, não seria nebuloso creditar natureza política aos crimes cometidos por Battisti? Note-se que nenhum de seus defensores ataca tão fortemente o segundo fundamento de sua defesa (o da falha nos processos) quanto sustenta a natureza política dos crimes pelos quais foi julgado. Argumentos ridículos foram desafiados em seu favor, inclusive: a Caros Amigos afirmou cinicamente que o Cesare Battisti de hoje não é o mesmo dos anos 70, e por isso sua pena seria mera vingança da extrema-direita, e que a seu favor pesaria sua negativa dos crimes que lhe são atribuídos. A se dar crédito aos argumentos da publicação, poderíamos dizer que os militares torturadores da ditadura brasileira não seriam mais as mesmas criaturas nefastas dos anos de chumbo, e que para acusados de qualquer crime, bastaria negá-los para usufruírem de perdão judicial.

Além de tudo, a Constituição garante também o respeito da República Brasileira à autodeterminação dos povos. Atacar o Judiciário italiano, perante o qual Battisti foi julgado – regularmente, a princípio –, não seria ferir este fundamento constitucional, baseado ainda por cima em tratados internacionais que o Brasil assinou?

Por penúltimo, o mesmo princípio da autodeterminação me leva a defender a escolha dos italianos por Berlusconi. É ele um pulha, política e pessoalmente; pode-se, por isto, lastimar sua eleição. Porém, não se pode imputar qualquer dúvida sobre a lisura do processo eleitoral italiano e, consequentemente, sobre a legitimidade e legalidade de sua condição de primeiro-ministro.

Afirmo, para concluir, que o jus esperneandi italiano contra a decisão do governo brasileiro, até o momento, se dá dentro da mais absoluta normalidade da diplomacia: não houve qualquer pressão indevida, ameaça de sanção de qualquer natureza, além daquelas permitidas. A Constituição Federal, ademais, está sendo respeitada: é ao Supremo Tribunal Federal que a República Italiana afirma que irá se reportar. Tudo dentro das regras do jogo.

13 comentários:

Itajaí disse...

Olha, Francisco, até onde eu entendi como leigo, a sustentabilidade da decisão está na fragilidade da alegada prova que a justiça italiana tem contra o acusado: uma delação premiada, que vem imbuída de pesada questão moral (entrego Deus e o mundo para safar o meu).
O acusado alega em defesa que na ocasião em que ocorreu o (s) crime (s), por discordar das diretrizes do partido clandestino pelo justiçamento de opositores, o havia abandonado.
De resto, repito, a Itália hoje não tem condições de sequer fazer barulho, quanto mais pressão sobre qualquer governo. Trata-se de jogo de cena para acalmar a direita italiana que está com os dentes no pescoço de um presidente politicamente frágil.
O imbroglio, é claro, vai animar a banda de música e seus desafinados maestros nacionais.

Francisco Rocha Junior disse...

Itajaí,
A delação premiada, em última instância, se baseia neste princípio mesmo: safo o meu, ainda que o entregue o outro. Desde que prevista em lei, é válida.
Sobre a validade ou não da delação que levou Battisti à pena, ela ocorreu, até onde eu saiba, em um único caso. Ele, porém, foi julgado e condenado por 4 homicídios.
Ainda que o testemunho tenha sido utilizado nos quatro casos, estas eram as regras do processo italiano. E lá, ele foi condenado. Por isso não cabe, em meu entender, ao Executivo brasileiro discordar da decisão do Judiciário de outro país. Por isso mesmo, também, o caso estava - como ainda continua - sob análise do Supremo.
Finalmente, repito a defesa que fiz, não de Berlusconi ou de Napolitano, o atual presidente, mas da instituição República da Itália: não há ilegitimidade ou iegalidade na eleição dos dirigentes máximos do país. Temos que respeitá-los como representantes democráticos do povo italiano, como Jader Barbalho e Wladimir Costa o são dos paraenses, duela a quien duela.

Anônimo disse...

Dá para afirmar que a decisão de dar asilo a Battisti está completamente desprovida de ideologia?

Itajaí disse...

Ora, nada é desprovido de ideologia, meu caro Antonio.
Mas, lembre-se, Francisco, o estado brasileiro nunca foi lá de respeitar apelos ou decisões jurídicas internacionais em casos assemelhados.
Recordei-lhe o caso do ditador paraguaio Stroessner. Mas agora lembro o caso do Carrasco de Sobidor, Franz Wagner, que Romeu Tuma prendeu. Arquicriminoso nazista confesso, procurado nos quatro cantos do mundo, que gozava do cenário paradisíaco de Atibaia, teve a extradição reclamada por Alemanha, Áustria e Israel. O que o Brasil fez nesse caso, em que as vítimas ainda vivas fizeram o reconhecimento face a face? Negamos a extradição e o Carrasco de Sobidor, quem sabe embasbacado com a dádiva inesperada, anos depois entregou santamente a alma ao diabo. Quem se importou com o assunto, ou o quanto jornais esquentaram e requentaram a notícia? Alguém se lembrou do STF para fazer valer o direito das vítimas de julgar o facínora?
Então essa his ou estória de ideologia/decisão unilateral do Ministro/ de tensionamento diplomático italiano não me comove. Lá na Itália como aqui há quem interprete leis e tome decisões. Se o resultado for equilibrado tudo muito bem, os jornais não se importam; se não for, aplica-se a lei de murici e cada um vai cuidar de si, inclusive os jornais da oposição ao governo. Tem sido assim.

Francisco Rocha Junior disse...

Itajaí, é perfeita tua observação sobre o asilo (inclusive informal) concedido a ditadores e sanguinolentos de direita, com Stroessner. Porém, um erro não justifica o outro.
Quanto à manifestação da imprensa, este não é o motivo da minha crítica. Sobre a parcialidade desta, estamos inteiramente de acordo, mas o assunto mereceria outro post, com outro foco.

Yúdice Andrade disse...

Meus caros:
1. Antes de mais nada, preciso ressaltar que, ao contrário do que disse o Francisco, não defendi a decisão de Tarso Genro. Como declarei expressamente em minha postagem, não falei nada sobre ela ser certa ou errada. Escrevi apenas sobre o caráter soberano que tal decisão possui, qualquer que seja o seu conteúdo, já que espelhando o exercício legítimo de competências constitucionais. Aliás, o objetivo-mor da postagem era sugerir que a eleição de um governo de esquerda implica em legitimar decisões como esta, que não seria tomada num governo de direita, que o povo poderia ter elegido, se quisesse.
2. O comentário do Francisco sobre a autodeterminação dos povos, no que tange à eleição de Berlusconi, é o mesmíssimo que uso para dizer que a decisão do nosso governo deve ser respeitada. Ou seja, respeitemos ambas as deliberações, no plano internacional. E isso nada tem a ver com questionar a lisura das eleições.
3. A delação premiada é um instrumento legítimo dos ordenamentos jurídico-penais, com o qual pessoalmente concordo. Entretanto, como leciona o notável Eugenio Raúl Zaffaroni, constitui uma técnica própria dos Estados policiais, assentados na forma e na perseguição aos inimigos. Ele, com toda a sua autoridade, repudia o método.
4. O Judiciário italiano já brindou o mundo com o célebre julgamento do homem que estuprou a vítima que, antes do crime, vestia calças jeans. Conclusão do tribunal: se a vítima estava de jeans (roupa difícil de tirar), o estupro só foi possível porque ela ajudou a despir a peça. Logo, houve colaboração da mulher. Logo, não houve estupro. Este veredito causou furor mundo afora, por ser ridículo e contrário aos fatos e ao bom senso.
Vamos adiante, que o negócio está bom.

Francisco Rocha Junior disse...

Yúdice,
Especificamente quanto aos pontos que tu apontas, comento:
1. Vejo que, na verdade, tua preocupação é a mesma do Itajaí: discutir a postura assumida pela imprensa quanto ao assunto. É isso o que concluo de boa parte dos aspectos que vocês ressaltam. Mas este é um caminho delicado, que pode vir a tornar maniqueísta o debate. Não é nosso caso, mas os mesmos argumentos justificam dualidades do tipo Luís Nassif/Paulo Henrique Amorim versus Reinaldo Azevedo/Diogo Mainardi.
2. Não vejo respeito à autodeterminação do povo italiano na postura do governo brasileiro de questionar o julgamento transitado e julgado de Battisti. Para mim, é clara a intrusão em assunto já decidido pela Justiça Italiana e, mais, submetido, aqui no Brasil, ao crivo do Supremo. O governo tomou a atitude, a meu ver, sobrepondo-se e antecipando-se à análise do Judiciário brasileiro também, que deveria ser a última palavra sobre o caso, em nosso território.
3. Sobre a delação premiada, nada a acrescentar. Tu foste preciso em teu comentário.
4. Finalmente, sobre bobagens judiciárias, o Brasil não fica nada a dever ao absurdo do exemplo que indicas. Basta lembrar o recente episódio de absolvição do fazendeiro Bida, acusado de ser mandante do assassínio da freira Dorothy Stang. E este certamente teve mais repercussão internacional negativa do que aquele que sugeres.
Vamos em frente.

Anônimo disse...

A título de colaboração, peço licença para meter o bedelho na discussão, com opiniões interessantes e pertinentes.
Particularmente sou contra a concessão de asilo político à Cesare Battisti, que para mim não passa de um assassino cruel e covarde.
Nada justifica o terrorismo, seja qual for sua conotação.
Quanto aos outros asilos concedidos, a maioria, foi por governos de direita, que também acho que indepedentemente da forma ou justificativa, eram outros tempos e casos diferentes. E quando se faz analogias deste tipo, podem-se cometer erros.
Convêm lembrar que um dos advogados que o defende é nada mais, nada menos, do que o Dr. Luiz Eduardo Greenhalgen. Que no mínimo, já julgaria a suspeição do ministro da Justiça, eticamente falando.
Por fim colo abaixo carta do italiano Adriano Sabbadin, filho de uma das vítimas deste frio assassino:

"Vivo em uma pequena cidade na província de Veneza. Escrevo a todos os brasileiros, pois hoje me sinto profundamente ferido pela decisão de vosso ministro da Justiça de considerar Cesare Battisti um refugiado político. Há 30 anos ele assassinou meu pai. Não quero vingança, mas uma justiça que não chega. Quem é Battisti: ele começou na política dentro do cárcere, detido que estava por crimes comuns, aí conheceu o terrorista de extrema esquerda, Arrigo Cavallina.
A primeira vítima dos Proletários Armados para o Comunismo – PAC, foi o suboficial da guarda carcerária Antonio Santoro. Quando este sai de casa para o trabalho, Battisti lhe atira nas costas (6/6/1978). Retornando ao seu grupo ele conta excitado à sua companheiraos efeitos de ver “alguém jorrando sangue”. Depois de uma série de assaltos o grupo resolver centrar contra aos agentes da “contra-revolução”, isto é, comerciantes que haviam reagido contra assaltos comuns.
Inicialmente pensou-se em somente feri-los, mas a vontade de mostrar a própria força a outros grupos de terroristas de esquerda, convence o PAC que é necessário fazer ver que se é capaz de matar. Chegaram a nosso açougue pelas 4 e meia da tarde. Meu pai, ajudado por minha mãe, atendia a algum cliente, eu estava nos fundos falando ao telefone, quando ouvi os tiros de pistola que ribombavam nos meus ouvidos. Apavorado, corri para nossa casa que ficava no andar superior, depois de longuíssimos minutos vi homens que saiam num carro em disparada. Quando cheguei ao açougue, vi minha mãe com o avental branco todo ensangüentado e meu pai no chão dentro de uma poça de sangue. A ambulância chegou rapidamente, mas nada pôde fazer.
Nos processos, seja a perícia e o testemunho de um arrependido, fez ver que Battisti tinha dado, sem piedade, os tiros mortais em meu pai. Battisti esteve sempre presente no grupo armado, colocando à disposição sua experiência de bandido e ficou conhecido por sua determinação em matar, jamais hesitando em fazê-lo.
Por todos estes crimes Battisti cumpriu somente um ano da cadeia, enquanto minha vida ficou completamente destruída. Me vi aos 17 anos como o chefe de família e um vazio que com o tempo só fez aumentar. Não pode existir paz sem justiça e a minha família justiça, não a teve.
Não consigo entender o que levou vosso ministro da Justiça e classificar Battisti como um refugiado político, declarando que na Itália existem aparatos ilegais de repressão ligados a Máfia e a CIA (Central Intelligence Agency), por isso não pode conceder a extradição, o fato me parece uma folia e mais que isso, ofensivo à nossa democracia.
Peço que façam um apelo ao vosso presidente para que reveja essa decisão.
Adriano Sabbadin"

Itajaí disse...

Não sabia dessa referência teórica, Yúdice. Excelente, agora posso justificar minha ojeriza a esse procedimento sombrio, que embora legal permite sérias brechas morais. E aqui chegamos a dualidade moral-jurídico que perpassa toda a ciência jurídica, não conseguindo iluminá-la de todo. Ao menos historicamente.
Vamos em frente.

Francisco Rocha Junior disse...

Raimundo, obrigado por sua excelente contribuição ao debate. Venha sempre.
E vamos em frente.

Anônimo disse...

Plagiando Chico Buarque de Holanda: é preciso o governo Lula criar urgentemente, ainda dá tempo, o Ministério do "Vai Dar Merda".
O difícil vai ser encontrar um ministro que tenha um perfil para o cargo.
Respeitando todas as opiniões e argumentos, não vejo "justiça" no deferimento do asilo político, e sim, um compadrio entre amigos.
Como foi, aliás, o tempo que Cesare ficou refugiado na França como protegido de Mitterrand. Concessão revista e caçada depois pela justiça francesa. Mas antes, sabendo do que viria ocorrer Battisti fugiu da França em 2004, refugiando-se no Brasil. Com a ajuda da Interpol e da polícia francesa ele foi preso no Rio de Janeiro em março de 2007, pois era um procurado internacionalmente. Em tempo recorde lhe é concedido asilo político, tudo isso coincidentemente no governo do PT.

Francisco Rocha Junior disse...

Ranieri, a posição do ministro é efetivamente uma postura política assumida pelo governo, por mais que ele negue.
Obrigado por sua leitura e participação no debate. Venha sempre.
E vamos adiante.

Yúdice Andrade disse...

Caro Itajaí, estou lendo agora "O inimigo no Direito Penal", do Zaffaroni, que trata da necessidade dos governos, em todos os tempos, de eleger um inimigo. Até onde te conheço, vais adorar.
Apesar do título, não é uma obra inacessível ao leigo em Direito. Um dos méritos do Zaffaroni é sua escrita agradável, perfeitamente assimilável por um homem culto, da tua estirpe. A obra, até onde cheguei, tem um cunho mais político do que jurídico. Recomendo.
Infelizmente, não posso emprestar o meu, porque estou fichando para as minhas aulas, que começam em alguns dias. Se te interessares em comprar, só pela Internet. A editora é a Revan, mas comprei pela Saraiva.com.