Roger Normando*
Numa quarta-feira nada cinzenta, pelo contrário, em plena atmosfera do círio de Nazaré, eu morri. Levei um tiro no tórax ao reagir a um assalto. “Na moral, na moral, passa o celular!!!”, disse-me o meliante. Não passei. Pensei logo no preço daquele E71, novo. Resisti.
Ele não pestanejou. Só ouvi o estampido ecoar por toda a Antônio Barreto, debaixo daquele semáforo, no início da noite. Ninguém mais ouviu, tão somente eu, jaz morto, com olhos fechados e a boca entreaberta.
O trânsito engarrafado facilitou a ação, mas nada justifica a minha vacilada, de ficar com o vidro aberto, numa zona de perigo, soturna, como é aquela artéria da antiga matinha.
Ao lado havia uma igreja e não uma delegacia para prender bandido. O hospital metropolitano, que me salvaria, estava longe. Portanto, quem chegou primeiro foram anjos. Morri nos braços de um deles. Eu clamei por justiça e ele, ao me recolher, com o corpo já arrefecido, pediu para perdoar, afinal de contas a virgem de Nazaré iria me dar um bom destino e um amparo saudável para a Marina, minha mãe, e meus cinco irmãos. Também clamei por um curativo efetivo, que evitasse perder toda minha volemia. Era a chance de eu ser ressuscitado. Outro arcanjo me relatou que esse vinho derramado não poderia mais voltar à taça, mas poderia ser doado para um necessitado. Alguém a espera de um transplante de medula óssea compatível com o meu A+.
Então me conformei. Tiro no peito é um paradoxo para um cirurgião torácico! Mas se sobrevivesse, quem me operaria? Provavelmente um ex-aluno, bem mais jovem e corajoso. Um bom cirurgião. Um que fosse capaz de afastar minhas costelas, coser meu pulmão ou meu coração com as linhas do sentimento pelo que aprendeu. Se restasse alguma seqüela, seria a única prova do que estou falando, mas o que valeria mesmo seria a comemoração da vida, coincidentemente num segundo domingo de outubro.
Quando ele disse “na moral, na moral...” eu não demorei a entender. Existia um neurônio de plantão, ligadão, que decifrou assim: era apenas um pedinte, desmontado de seu “berro” e sem a intenção de matar. Queria apenas engordar sua caixinha para passar o círio com uma mesa mais farta do que o seu pão de todo dia.
Aí percebi que não morri. Apenas tornei-me um defunto-autor vivo, como diria Machado de Assis. Uma espécie de Braz Cubas da Antônio Barreto, em busca de decifrar o que aquele jovem alto, pidão e descamisado quis dizer com: “na moral, na moral...”. Preferiu-me multar a sacar sua arma e me cravejar de balas. Dei-lhe o celular para pagar a multa da patetice. Valéria, João Pedro e Danilo agradeceram. Só perdi minha agenda, umas frases do Guimarães Rosa, que coleciono, e umas canções do Michael Bublè, que muito lembra o Sinatra. Mas recupero tudo, depois de fuçar aqui e ali, com ajuda de uns amigos. Só não recupero o trauma - a cicatriz da insanidade dos transeuntes à espreita de um pateta, como eu.
Quando tudo acabou, o sinal ficou verde, tão cartesiano como eu se fosse um protagonista de “O seminarista”, na novela policial de Rubem Fonseca. Meio que acelerei o carro, mas ainda não entendia aquilo como vida. Estava vivo realmente? Desmaiei? Ou como sublinhou Braz Cubas: “A vida estrebuchava-me no peito, com uns ímpetos de vaga marinha, esvaía-se-me a consciência, eu descia à imobilidade física e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra e lodo, e coisa nenhuma.” Não havia diferença entre aquela pneumonia de Brás Cubas e o tiro que não levei.
Um feliz círio, para você, jovem, que me poupou da morte e me levou aquele celular já meio capenga, cuja tecla “reage” já não funcionava há algum tempo.
*Obervação de Carlos Barretto: este texto, do médico, amigo e colega cirurgião de tórax Roger Normando, como o leitor já deve ter percebido, devia ter sido publicado antes do Círio, no dia em que foi recebido, como sempre o fazemos. Contudo, por uma falha minha, como destinatário do texto, envolvido em inúmeros afazeres pré-cirianos, acabei por esquecê-lo na caixa de entrada do GMail. Um erro imperdoável, pelo qual me desculpo, junto ao autor e leitores. Prometo estar mais atento. E desde já, agradeço a mais esta colaboração de Roger.
7 comentários:
Normando.
Sou A-.
Há tempos que nao sabia o que é andar nas ruas sem a preocupacao de qualquer hora ser protagonista de uma situacao lamentavel como esta. Quando estamos fora do Brasil é que percebemos o custo que é morar no nosso país. Fico pensando em tanta campanha , tanta celeuma atual , mas na verdade estamos longe , de fato muito longe , de garantias da coisas básicas. Triste em constatar. Apesar do acontecido fico feliz de nao ter sido o pior pra o autor do post. Sorte, muita sorte a nós que vivemos em Belém do Pará do Brasil, talvez seja só com ela que poderemos contar nessas ocasiões.
Pois é, amigos. Roger entrou para este clube, que nunca foi tão bombado de associados. Mais que já gera um segundo clube: o dos sobreviventes.
Abs
Tenho também, UMA dessas histórias.
Quinta-feira, 7/10. Véspera do Círio, alguns ainda precisando descolar a grana pra beca, pro pato, pra maniçoba, pra cerveja etc.
Por volta das 14h30, João Balbi, quase esquina da Generalíssimo. Toca o telefone celular e eu, sem pensar, atendo. Levantando os olhos vejo ir chegando um rapaz de bicicleta, parece que havíamos marcado um encontro... Pensei rápido: "Putz!Vai me assaltar!
Batata! O cara me espremeu contra a grade/muro de uma casa, colocou a mão na altura do cinto da calça e segurando no "trabuco" que se destacava por baixo da camiseta me ameaçou: ou eu entregava o celular ou ele me dava um tiro.
Aí, tudo foi muito rápido! Olhei para o cara, olhei para o "trabuco" por baixo da blusa e na hora que eu ia entregar-lhe o celular, num segundo, o coração aos pulos, "tico e teco" me falaram baixinho: "Pode não ser uma arma, NÃO É UMA ARMA!" Aí, ao invés de entregar-lhe o aparelho, meu braço descreveu um arco no ar e tum!, atirei-o por cima da grade/muro da casa que estava por trás de nós!
O larápio deve ter ficado, no mínimo, muito surpreendido e depois bastante incomodado com meus gritos - aqueles gritos típicos de toda mulher quando vê, por exemplo, uma barata.
Na rua, foi uma correria danada! Muitas pessoas - que estavam observando a cena de longe -, foram ao encalço do cara, todos pensando que o celular tinha sido roubado.
Quando me acalmei, foi uma luta para explicar que o celular deveria estar no meio das plantas do jardim por trás da grade/muro onde eu ainda estava "plantada"! E outra luta para achar o bichinho que só sofreu uns poucos arranhões.
Bom, vocês podem imaginar que o público ficou dividido: para uns eu era louca, para outros uma quase super mulher! Eu, bem, eu concordei com os que teriam me levado direto para um manicômio! Sei lá, a gente nem imagina do que é capaz nessas horas!
Moral dessa história: fiquei uns dias sem coragem de tirar o pobre do celular de casa e, ainda hoje, quando saio de casa, olho pra lá e pra cá, tentando antecipar, para evitar, um desses encontros onde eu tenha que revelar essa outra pessoa que, juro, não pode ser eu!
Abs, Rz
Ao qual eu tomo acento! Fui assaltado às duas horas da tarde de um domingo, o carro em movimento de 40 a 60 km/h. Uma cena de guerrilha urbana. Um muleque vindo em sentido contrário, montado em uma bicicleta, em uma rua de mão dupla, a uma distância calculada, pulou da bicicleta e jogou-se na frente do carro. Levou tudo que havia no interior do carro. Meu equipamento fotográfico foi junto. Até a lixeira eles levaram. As pessoas nas calçadas só apreciavam as cenas. Foi um tiro na cidadânia.
Porra, Roger! Sempre começo a ler post pelo "Postado por...", aí, no início, comecei a ler rápido (como sempre faço pra ver se gosto e, aí sim, parar, voltar e ler com atenção), e, por átimo, por uma colisão de partículas no acelarador, no instante em que o glúon atrai o neutro pro próton, pensei que era o Barreto falando que tu tinhas sofrido um assassinato!!!
Ora porra, vão dar susto na casa do caralho!!! Pensei logo no Marcelinho e na Marina. Ah, e no David, com quem cruzo quase todo o dia no Wandenkolk...
...já puto com o Marcelinho e com o Andrezinho por não terem me ligado, etc, etc, etc... UFA!
UFA!
Que bom que foi só mais um assalto. Que bom que foi só mais uma violência de esquina em Belém. Que bom que foi só mais um assalto de semáforo em Belém. Que bom...
Quem bom? Que que tô falando!!! Socorrooooooooooo!
Senti-me um Hitchcock contando esta história. Você, um jerry Lewis interpretando-a. Fantástico. Mas a mamãe não pode lê-la. A Marina vai fechar as coronárias que ainda estão boas ou obstruir os stents. Vai devagar com a minha bicicleta velha!!!!!!!!!
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