sábado, 23 de outubro de 2010

No limiar da (in) sanidade


Há tempos, a moradora de rua conhecida coma “a Louca da Vila Bolonha” adotou a frente do prédio onde moro como o seu campo de batalha privado.
Geralmente no meio da manhã, a dita senhora que habitualmente perambula pelas redondezas do Palacete Bolonha, aparece descalça, maquiada, suja, porém “arrumada” e sempre aos berros.
As conversas e gritos com pessoas e vozes que somente ela pode ouvir logo se transformam em acessos repentinos de raiva e pedras voam generosamente sobre transeuntes, casas e carros que têm a infelicidade de por ali estar.
Os moradores, curiosos e assustados ao mesmo tempo, se trancam e evitam sair durante os acessos de agressividade (eu, inclusive). No entanto, do alto do meu apartamento posso ver claramente que a maioria acaba não resistindo à tentação de espiá-la, como se fosse um animal raro, um ser selvagem ou mesmo um alienígena.
Sempre que a cena se repete me pego pensando nos doentes mentais que vagueiam e vagaram pelas ruas das vilas e das cidades deste mundo durante os últimos séculos, em quantos deles foram trancados, mal-tratados ou mesmo não-tratados e até mortos deliberadamente.
Nos tempos atuais, ditos modernos, não mais existe a “nau dos loucos”, mas é inegável que os homens e mulheres privados de suas sanidades mentais, 450 milhões de pessoas ao todo(segundo a OMS), continuam sendo tratados como loucos no discurso cotidiano dos “terráqueos” e excluídos de muitas maneiras (algumas das quais, subliminares).
As neurociências avançaram um pouquinho recentemente, mas é bem claro que ainda se mantêm muito aquém da plena compreensão de doenças como a esquizofrenia e o transtorno bipolar. E, enquanto não entendermos melhor as patologias, estaremos fadados a tratá-las de forma inadequada.
Eu recomendaria aos flâneurs e aos amigos comentaristas a leitura de uma obra literária ímpar, Entre a Razão e a Ilusão (Editora Segmento Farma), escrita a 6 mãos pelo psiquiatra Rodrigo Affonseca Bressan, pela terapeuta ocupacional Cecília Cruz de Villares e pelo vice-presidente da Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Esquizofrenia, Jorge Cândido de Assis (portador de esquizofrenia).
A leitura deste livro definitivamente pode nos ajudar a penetrar um pouco na condição não linear e pouco racional dos estados de consciência oscilantes, como os da “Louca da Vila Bolonha”.
É como afastar um véu e tentar ver um fragmento do seu real rosto: do rosto da Maria, da Joana ou da Nazaré, quando ela ainda tinha um nome.
Vale a pena.

8 comentários:

Yúdice Andrade disse...

Agradeço a recomendação. Além de me interessar pessoalmente pelo tema, é imprescindível que a sociedade seja conclamada a entender melhor o universo das patologias mentais, a fim de se humanizar um pouco. Este é um campo em que, embora os afetados sejam vítimas, costumam ser tratados apenas com preconceito e desdém. Até pelos criminosos mais duros há quem seja condescendente. Por que por eles não?

Scylla Lage Neto disse...

Yúdice, seu comentário confirma que o direito e a medicina são duas entidades bem semelhantes. E você conseguiu colocar em palavras exatamente o que eu tentei: condescendência já!
Abs.

Anônimo disse...

Minha empregada doméstica sofre muito com as crises q sua filha enfrenta. Ela se angustia em querer saber como ela adquiriu esta insanidade mental ou qual a causa q provocou este mal, pois inexiste antecedentes familiares. E tome remédio forte, tome idas a hospital das clinicas, um monte de receitas....E nada!!!
Como ajudar?

Val-André Mutran  disse...

Cara.
É o seguinte.
Te liguei pra burro e não consegui, ao longo de três meses, tomar um drink contigo.
Tú tá sujo comigo viu? Hehe.
Esse teu post é um espetáculo!!!
Fora de série mesmo.
Agora.
Que tal a gente começar a adotar pessoas, digamos, com um comportamento um tanto quanto diferente!?
Tem gente por ai, Scylla, que gasta a maior grana para ter um Lulu.
Não, mano. Não é o Lulu que fala não.
Aquele Lula falava pelos cotovelos, visse?!
Sumiu.
Um pila.
Pilas tem que sumir mesmo.
Mas, voltando ao post.
Vamos adotar os perturbardos?
Quem topa?

Scylla Lage Neto disse...

Anônimo da 18:00h, suponho que você se refira a crises psicóticas.
Dificilmente um fator causal único será identificado.
O fator hereditário pode ter relevância, mas, como pula gerações, nem sempre é comprovado.
Sugiro insistir no Hospital das Clínicas, pois existe um leque de medicamentos e combinações a serem tentados.
Torço para que um especialista acerte a mão nos remédios e que a paciente melhore.
Um abraço.

Scylla Lage Neto disse...

Égua, Val, estamos devendo um drink (aliás, vários drinks!).
Os desencontros às vezes trazem bons encontros na ilharga do futuro.
E espero ir em breve ao planalto para rever o meu tio e você.
Quanto ao post, obrigado pelas gentis palavras.
A sua idéia de "adoção" é ótima. Adotar através do respeito dispensado aos doentes mentais e a suas famílias, através da ajuda material e do conforto emocional e/ou espiritual.
Eu acho que já faço um pouco disso (muito pouco, na verdade), mas sem dúvida posso e tentarei fazer muito mais.
Let's do it, Pal, and let it roll!
Um grande abraço.

Rz disse...

Há dois semestres trabalho com pessoas atendidas por um CAPS da região metropolitana de Belém.
Olhe só aqui:
http://ntebelempa.blogspot.com/2010/04/parceria-e-desafio-legais.html
Durante duas horas semanais tentamos, juntos, nos apropriar das ferramentas e programas básicos mais comuns, presentes nos computadores da SEDUC. Contamos também com a presença de pessoas especializadas, do próprio CAPS, que nos ajudam naqueles momentos em que nossos alunos precisam de um atendimento específico.
Um real interesse, pesquisas específicas, paciência e bom humor têm ajudado muito. E o resultado está sendo muito gratificante.
Essas ações mais "concretas" correspondem à última parte da sua postagem, além de se tornarem momentos de grande valor para o nosso próprio crescimento profissional.
Será que a senhora do Bolonha ou seus familiares conhecem o CAPS?
O NTE também trabalha com a SUSIPE, a Fábrica Esperança, a Educação indígena, movimentos comunitários dos bairros de Belém, com o projeto Prosseguir, para ficar só nesses exemplos.
Muitas dessas pessoas atendidas não estão diretamente integradas ao sistema escolar público, mas são TODAS membros da Comunidade escolar com as quais, mais do que ensinar, aprendemos muito para cada vez mais melhorar tanto nossas práticas específicas de trabalho como nossa maneira de nos comportarmos como seres humanos.
Abraço cordial, Rz

Scylla Lage Neto disse...

Rz, agradeço seu comentário, aliás uma demonstração prática extraordinária da "adoção" sugerida pelo Val-André.
Permitir a abertura dessa janela, dessa interface de comunicação com pessoas ainda cobertas pelo "véu" só pode redundar numa experiência altamente positiva para todos os envolvidos, mesmo considerando todos os obstáculos e adversidades do caminho.
Parabéns e um abraço.