terça-feira, 24 de julho de 2012

As cores de Sao Petersburgo


Mas a Rússia tem as cores da vida.
A Rússia é vermelha e branca.
Carlos Drummond de Andrade em: “Algumas poesias”, 1930.

Vladimir sobreviveu ao cerco a Leningrado e à fúria do Fürher, sobretudo ao gás mostarda, estrondos de canhões, sede e fome. Escapou para Sibéria no meio da guerra, escondido numa delegação de atletas de basquetebol. Levava na mochila livros e um pequeno busto de Catarina a namoradeira, retirado da sala âmbar do Castelo Romanov. Voltou. Ressurgiu tísico: epiderme sobre ponta de osso. Voltou por que as Dachas estavam ao léu e não havia alimentos. Também por que as montanhas russas eram repletas de ziguezagues e de ursos famintos oriundos da taiga siberiana. Vladimir deu última forma...
No bolso apenas um poema de Pushkin e a página final de "Crime e castigo", assim grifada: “tinha ele [Raskólnikov] o evangelho debaixo do travesseiro...”. Deixou o busto e aquelas pedras âmbares para o povo mongol vender como souvenir, assim como as outras 560 páginas do romance de Dostoievski.
Encenou a volta, porém as cortinas de ferro não se abriram sobre tapetes vermelhos. Após o cessar-fogo de 900 dias, cores cinza dos destroços ainda acarpetavam a Nevski e as outras ruas e empoeiravam as paredes verdejantes do Hermitage. O rio Neva estava toldado. Havia ainda cheiro de pólvora e zunido de estampidos na memória. Torpedos até hoje estão pendurados nos domos das igrejas. Um milhão e quinhentos defuntos amontoados no chão das catedrais ortodoxas – metade de Leningrado. Neste cenário, Vladimir viveu as últimas noites brancas da velha soviética. Descobriu, conversando com o sol de verão da meia-noite, já que estrelas não lhe davam trela, que Deus fez o céu, mas deixou a terra aos homens para controlar o eixo da rotação. Foi o dia em que a terra parou para Vladimir, enterrado às vésperas da Perestróica, com Gorbachov empunhando uma das alças de seu ataúde.
Natasha, a neta e também nossa guia, e Putin, o KGB disfarçado de Pedro o Grande, não creem, mas todo nove de maio, dia de parada militar, o vozinho abandona o túmulo, bota o coturno, veste-se de marinha, dá uma talagada na Vodca, vai para calçada, balança a cadeira e cospe no cós da farda de Stálin. No estalo da ejeção exorciza o Nazismo e todo o imperialismo da dinastia Romanov. Lênin, que desnomeou Petersburgo, fecha o olho direito e com o esquerdo espia a cusparada; Gorbachov puxa o lenço vermelho que macula a fronte e tenta enxugar a baba. O manifesto do vô limpa o sangue rútilo do pequeno Báltico e abre a fronteira do sonho capitalista.
Ao fim do desfile o vozinho despede-se da família e volta ao sepulcro. Deita-se e tenta adormecer, mas alguém o alfineta na altura das costelas. É Rasputin:
- Como está nossa Petersburgo czarina?
- Muita labuta. A foice e o martelo deram vez à maçã do iPutin, esse xará que se diz o grande filho da luta.
Vladimir vozinho cala-se e cerra as fendas palpebrais; Rasputin volta ao leito e adormece. Natasha enxuga as próprias lágrimas que escorrem na solidão dos dois destinos e entoa o poema de Pushkin, que vozinho guardara no bolso: “Mas a guerra é pior que a morte, e temo que te desfaça o encanto fino do porte e a tua lânguida graça”.
Há sempre a esperança que nasçam tulipas amarelas do chão onde se faz a guerra, o sangue se enterra e a selvageria se encerra.

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