Mas a
Rússia tem as cores da vida.
A Rússia é
vermelha e branca.
Carlos Drummond de Andrade em: “Algumas
poesias”, 1930.
Vladimir sobreviveu ao cerco a Leningrado e à fúria
do Fürher, sobretudo ao gás mostarda, estrondos de canhões, sede e fome.
Escapou para Sibéria no meio da guerra, escondido numa delegação de atletas de
basquetebol. Levava na mochila livros e um pequeno busto de Catarina a
namoradeira, retirado da sala âmbar do Castelo Romanov. Voltou. Ressurgiu tísico:
epiderme sobre ponta de osso. Voltou por que as Dachas estavam ao léu e não
havia alimentos. Também por que as montanhas russas eram repletas de
ziguezagues e de ursos famintos oriundos da taiga siberiana. Vladimir deu última
forma...
No bolso apenas um poema de Pushkin e a página
final de "Crime e castigo", assim grifada: “tinha ele [Raskólnikov] o
evangelho debaixo do travesseiro...”. Deixou o busto e aquelas pedras âmbares
para o povo mongol vender como souvenir, assim como as outras 560 páginas do
romance de Dostoievski.
Encenou a volta, porém as cortinas de ferro não
se abriram sobre tapetes vermelhos. Após o cessar-fogo de 900 dias, cores cinza
dos destroços ainda acarpetavam a Nevski e as outras ruas e empoeiravam as
paredes verdejantes do Hermitage. O rio Neva estava toldado. Havia ainda cheiro
de pólvora e zunido de estampidos na memória. Torpedos até hoje estão
pendurados nos domos das igrejas. Um milhão e quinhentos defuntos amontoados no
chão das catedrais ortodoxas – metade de Leningrado. Neste cenário, Vladimir
viveu as últimas noites brancas da velha soviética. Descobriu, conversando com
o sol de verão da meia-noite, já que estrelas não lhe davam trela, que Deus fez
o céu, mas deixou a terra aos homens para controlar o eixo da rotação. Foi o
dia em que a terra parou para Vladimir, enterrado às vésperas da Perestróica,
com Gorbachov empunhando uma das alças de seu ataúde.
Natasha, a neta e também nossa guia, e Putin, o
KGB disfarçado de Pedro o Grande, não creem, mas todo nove de maio,
dia de parada militar, o vozinho abandona o túmulo, bota o coturno, veste-se de
marinha, dá uma talagada na Vodca, vai para calçada, balança a cadeira e cospe
no cós da farda de Stálin. No estalo da ejeção exorciza o Nazismo e todo o
imperialismo da dinastia Romanov. Lênin, que desnomeou Petersburgo, fecha o olho
direito e com o esquerdo espia a cusparada; Gorbachov puxa o lenço vermelho que
macula a fronte e tenta enxugar a baba. O manifesto do vô limpa o sangue rútilo
do pequeno Báltico e abre a fronteira do sonho capitalista.
Ao fim do desfile o vozinho despede-se da família
e volta ao sepulcro. Deita-se e tenta adormecer, mas alguém o alfineta na
altura das costelas. É Rasputin:
-
Como está nossa Petersburgo czarina?
-
Muita labuta. A foice e o martelo deram vez à maçã do iPutin, esse xará que se
diz o grande filho da luta.
Vladimir vozinho cala-se e cerra as fendas
palpebrais; Rasputin volta ao leito e adormece. Natasha enxuga as próprias lágrimas
que escorrem na solidão dos dois destinos e entoa o poema de Pushkin, que
vozinho guardara no bolso: “Mas a guerra é pior que a morte, e temo que te desfaça o encanto fino
do porte e a tua lânguida graça”.
Há sempre a esperança que nasçam tulipas amarelas
do chão onde se faz a guerra, o sangue se enterra e a selvageria se encerra.
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