Vicente
Malheiros da Fonseca
Desembargador (decano) do
TRT-8ª Região.
Roberto Araújo de Oliveira
Santos Ingressou
na magistratura trabalhista, mediante concurso público, em 1963, classificado
em 1º lugar.
Fez carreira na Justiça do Trabalho da 8ª Região e chegou à Presidência
do TRT-8ª Região, cargo, que na época, acumulava as atribuições da Corregedoria
Regional.
Era professor universitário, economista, pesquisador, escritor e
cientista do direito. Falecido em 24 de junho de 2012, deixa viúva a cientista Drª.
Elizabeth Santos e filhos.
Tive o privilégio de conviver com Roberto Santos, inclusive na bancada
do TRT-8ª Região, com quem muito aprendi.
Roberto Santos pertenceu a uma geração de magistrados trabalhistas de
escol, numa época áurea do TRT-8ª Região, que já teve juízes da estirpe de
Raymundo de Souza Moura, Aloysio da Costa Chaves, Orlando Teixeira da Costa,
Pedro Thaumaturgo Soriano de Melo, Semíramis Arnaud Ferreira, Lygia Simão Luiz Oliveira, Rider Nogueira Brito, Marilda
Wanderley Coelho, Haroldo da Gama Alves e tantos outros.
Uma das maiores obras de Roberto Santos, enquanto Presidente do TRT-8,
foi a realização do Curso de Formação e
Aperfeiçoamento de Magistrados, inspirado na Escola Nacional da
Magistratura da França, em nível de especialização, mediante convênio do nosso
Tribunal com a Universidade Federal do Pará, coordenado pelo magistrado Rider
Nogueira de Brito. O 1º Curso foi realizado em 1984 e dele participei,
juntamente com diversos outros colegas, como Rosita Nassar, Eliziário Bentes,
Marilda Coelho, Antonio Soares Araújo e outros. Estou convencido de que foi o
melhor curso jurídico de minha vida, pois me proporcionou uma nova mentalidade
crítica sobre a ciência jurídica e a postura ética do magistrado. Esse Curso,
pioneiro em nosso país, foi o verdadeiro embrião da Escola Judicial, tão
necessária para a formação e o aperfeiçoamento dos magistrados, finalmente
implantado pelo legislador brasileiro, vinte anos depois, com a aprovação da
Emenda Constitucional nº 45/2004, que
dispõe sobre a "Reforma do Poder Judiciário“.
Em trabalho de pesquisa de campo, no estudo da
disciplina Noções Básicas de Ciências Sociais, sob orientação do Prof. Roberto
Araújo de Oliveira Santos, durante a realização do 1º Curso de Formação e
Aperfeiçoamento de Magistrados, em 1984, promovido pelo nosso Tribunal em
convênio com a Universidade Federal do Trabalho, pude constatar a enorme
distância entre a “verdade real” e a “verdade formal” no confronto de peças do
processo judicial com os dados disponíveis nos órgãos da imprensa, pelas
conversas informais com pessoas envolvidas em certo conflito agrário no
interior do Estado do Pará e pela visita que permitiu a verificação direta na
área em que os fatos aconteceram. Compreendi, desde então, que as sentenças
judiciais quase sempre refletem os vícios da inverdade. O papel do juiz
consiste em descobrir a verdade.
Trabalhadores rurais, Xambioá, To - 1983
Há quem diga que a verdade está muito além da
percepção humana. Para descobri-la não seria suficiente baixar os olhos sobre
os autos do processo ou dos livros; mas, ao contrário, elevar a vista e postar
as mãos, em oração, para rogar ao Criador a inspiração necessária à descoberta
da verdade verdadeira.
Outra grande realização de Roberto Santos, na Presidência do nosso
Tribunal, foi a medida heróica tomada para intervenção na administração da Santa Casa de Misericórdia do Pará,
que, além de centenas de reclamações trabalhistas, passava por uma grave crise
econômico-financeira, sem precedentes. Roberto Santos, de modo corajoso e inédito,
tomou medidas extraordinárias para salvar e recuperar a situação caótica
daquela entidade secular, com grande repercussão não apenas no âmbito da
magistratura trabalhista nacional, mas, sobretudo, para a sociedade paraense.
Todos os processos, em fase de execução, foram reunidos num único juízo de 1º
grau, a fim de implementar providências uniformes e eficazes para gerir a
crise, com sucesso.
Roberto Santos , Jarbas Passarinho, Helcione Barbalho, Almir Gabriel e Daniel Coelho de Souza - Santa Casa 1984
Em 1976, quando Juiz Substituto, no exercício da Presidência da Junta de
Conciliação e Julgamento (atualmente, 1ª Vara do Trabalho) de Abaetetuba, no
interior do Estado do Pará, proferi uma sentença com mais de 100 páginas, que
tratava do “trabalho escravo”
(Processo nº 091/1976), talvez a primeira sobre o tema, no Brasil. A sentença
foi confirmada pelo TRT-8ª Região, por maioria de votos, em Acórdão prolatado
por Roberto Santos, na condição de Revisor (Acórdão nº 8.442 – Processo RO
53/1977).
Em meus arquivos, guardo aquela sentença, prolatada em 09.12.1976,
portanto há quase 36 anos.
Tratava-se de uma reclamação verbal formulada por um trabalhador rural
contra uma empresa detentora de um engenho de cana de açúcar, notadamente para
o fabrico de cachaça. Ali o reclamante trabalhou, na lavoura, por muitos anos.
Na época da instrução do processo, obtive informações preciosas dos vogais
(antiga denominação dos juízes classistas), titular e suplente, representantes
da classe dos trabalhadores. E resolvi incluir na fundamentação da própria
sentença o teor daquela conversa, pois ambos me revelaram que tinham trabalhado
também na condição de “financiados”, naquela região paraense. O conhecimento
pessoal dos fatos, portanto, constituía experiência interessante para ilustrar
a decisão judicial, para muito além dos limites restritos dos autos do
processo.
O suplente de vogal empregado resumiu a situação dos chamados
“financiados” numa expressão impressionante, que jamais esqueci. Disse-me que
eles são uns verdadeiros “escravos
disfarçados”.
Peço licença, então, para reproduzir alguns trechos daquela longa sentença.
Longa certamente em razão das peculiaridades que o caso oferecia ao jovem
magistrado trabalhista que era eu.
Eis a realidade nua e crua:
“Trabalhando na roçação
(expressão comum da região), na derruba, na queimada, na aparação dos grelos,
na limpeza do chão (coivara), no plantio, nas capinações, na batição da folha,
cuidando da plantação durante a fase de amadurecimento, no corte etc., os
cognominados de ‘financiados’ têm por obrigação de entregar toda a sua produção
ao Engenho (‘financiador’ – verdadeiro empregador), sob pena – muitas e muitas
vezes – de serem arrastados ao xadrez na hipótese de essa produção ser entregue
a terceiros... Os ‘financiados’, às vezes, podem ser confundidos com os
chamados ‘aviados’ (mas destes se distinguem claramente), sujeitando-se ao ‘truck
system’, legalmente proibido, sendo ‘pagos’ com moedas dos mais diversos tipos
(de couro, de latão, de papelão), como, inclusive, conta o lado triste de nossa
História. Na entrega da produção geralmente a quantidade de frasqueiras não
corresponde com a realidade, pois enquanto o trabalhador produziu vinte (20) ou
mais frasqueiras, por exemplo, o Engenho somente anotou, no máximo, dez (10),
em detrimento do trabalho operário, anotação essa feita num famoso Livro, ao
qual o obreiro nunca tem alcance, revelando que o ‘financiado’ está sempre DEVENDO. Na maioria das vezes
este débito é resultante de juros
extorsivos, impostos pelo Engenho, ou mesmo para obrigar o ‘financiado’ a
continuar trabalhando, num estado de uma sempre e progressiva DEPENDÊNCIA, para
‘pagar a dívida’. E isto sem contar os preços exorbitantes das mercadorias
‘adquiridas’ pelo trabalhador. Enfim, a ‘escravidão’
é completada com o seguinte: de uma produção de dez (10) frasqueiras, cinco (5)
são entregues ao Engenho, inteiramente livres de qualquer incidência, aumento
ou desconto, das outras cinco (5) frasqueiras é que é descontado o ‘terço’, é
tirado o dinheiro para fazer face às despesas com o corte da cana, e, ainda,
com esta outra parte (5 frasqueiras) o trabalhador vai ‘pagar’ (?) o dito
capital ‘financiado’...
Vale ressaltar que quase
todos os ‘financiados’ não entendem essa ‘matemática’. Somente depois de uma
conscientização, ou através de uma pessoa mais esclarecida, ou mesmo através de
seu Sindicato de classe (quando muito), é que podem compreender como foram
explorados. Muitos deles vivem e morrem sem nunca saber que foram ‘escravos
disfarçados’!
Trabalhador rural descarrega barcaça de cana, Abaetetuba, Pará - 1991
Quem ainda duvida que esse
ignominioso sistema seja um verdadeiro FEUDO em pleno século vinte, quase vinte
e um? Seria, ainda, herança deixada pelo Coronel José Júlio?”
Transcrevo alguns tópicos do voto da lavra do Juiz Revisor, Dr. Roberto
Araújo de Oliveira Santos, que se reportou ao seguinte trecho da
decisão de 1º grau, in verbis:
“O reclamante assumia duas
(2) posições distintas: a) funcionava como falso-parceiro quando trabalhava nas
terras da empresa reclamada, descontando o terço para o Engenho, e b)
funcionava como pseudo-empreiteiro quando trabalhava em terras de terceiros,
entregando, porém, toda a produção para a reclamada. (...) Não se diga que o
empregador era o reclamante, um caboclo analfabeto, sem qualquer idoneidade
econômico-financeira (...), portanto sem condições de assumir o risco de uma
atividade econômica (empresarial), logicamente” (Acórdão nº 8.442 – Processo
TRT RO 53/77, julgado em 02.05.1977 e assinado em 11.05.1977).
A ementa do aresto regional é a seguinte:
“Autonomia de
trabalhador rural – Não impede o vínculo de contrato de trabalho a condição
de autônomo do rurícola”.
Na época, não havia muito tempo que tinha sido editada a Lei nº
5.889/73, cujo artigo 17 manda aplicar ao “trabalhador
rural” (geralmente, o falso empreiteiro, o falso parceiro, o falso
arrendatário etc.), no que couber,
direitos assegurados ao “empregado rural”, assim definido no art. 2º daquela
mesma lei.
Creio que esse dispositivo pode muito bem ser considerado ainda hoje no
julgamento das demandas trabalhistas que abrangem os rurícolas, o que nem
sempre tem sido observado pela jurisprudência.
Lembro-me também de que, ao publicar o meu primeiro artigo sobre o “Fundo
de Garantia das Execuções Trabalhistas”, na Revista do TRT-8ª Região,
v. 12, nº 22 (julho-dezembro/1979), uma das primeiras manifestações que recebi
foi justamente um longo telefonema de Roberto Santos, para enaltecer a ideia,
inspirada no precedente espanhol, e me incentivar para continuar lutando pela
concretização dessa importante medida para agilizar a execução trabalhista,
enfim, prevista no art. 3º da Emenda Constitucional nº 45/2004, mas ainda
pendente de regulamentação legal.
Deixei para o final algumas palavras
sábias de Roberto Santos – sobre a ética
– que me marcaram profundamente, conforme transcrição no texto de palestra que
proferi no encerramento do Ciclo de
Palestras “Acesso à Justiça – A busca da efetividade do Direito”, promovido
pela Escola Judicial da Justiça do Trabalho da 8ª Região, no período de 1º a 4
de setembro de 2009, na Sala de Aula da EMATRA-8 (Belém-PA); e no artigo, sob o
título “A EFETIVIDADE DA JUSTIÇA SOCIAL COMO GARANTIA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE
DIREITO”, publicado na Revista nº 83 do TRT-8ª Região, volume nº 42 (julho-dezembro/2009),
p. 29/45.
O Juiz Roberto
Santos já advertia:
“O
Judiciário, como tantas vezes foi repetido de modo romântico, é realmente um
poder desarmado: toda a sua força tem natureza essencialmente moral. É uma
instituição, sim, mas é antes de tudo um espírito – o espírito trágico da
humanidade em busca de justiça, um espírito de liberdade e de razão, de
investigação disciplinada pela lei mas livre do convencimento pessoal.
O espírito
do Judiciário é, inclusive, indispensável para manter a chama de sua
espiritualidade como algo real e de efeitos concretos. Quando houvesse um órgão
doente no Judiciário, um ou mais magistrados que não se alimentassem daquela
chama, mas de alheios e baixos interesses, ainda sem a apuração e o julgamento
de sua culpabilidade deverão ser livres – e a força do espírito haverá de
prevalecer. O erro e a maldade não têm essência própria; são parasitários da
verdade e do bem, já ensinava MARITAIN, o grande humanista que a França e o
mundo perderam recentemente.
Violar
pois este espírito é ferir o Judiciário em seu próprio coração. Quem quiser
decretar-lhe a morte, não pense que baste mais: mesmo que a instituição
permaneça de pé, com seus órgãos e audiências em funcionamento, o Judiciário
será um morto-vivo, uma horrível e sinistra contrafação do ideal que a
humanidade sonhou desde tempos imemoriais.
O espírito
é capaz de atravessar séculos. Mas o mal humano, o mal histórico, está sempre a
conspirar contra as energias e pode sufocá-las por longos períodos. Todos os
homens têm o dever de lutar, na comunidade e principalmente dentro de si
mesmos, contra as potências do mal em ação. Se não o fazem, se por exemplo
mobilizam força e apoio contra os raros núcleos de poderio espiritual, correm o
gravíssimo risco histórico de colaborar para a deterioração e o apodrecimento
da civilização.
Tenhamos
vigilante nossa inteligência, mas limpo o coração e calma a nossa esperança
quando um interesse nosso for entregue a órgãos judiciais de tradicional
probidade. Omnia munda mundis: para
os limpos, tudo é limpo. E lembremos, principalmente se advogados, a
advertência do ardente advogado que foi CALAMANDREI, em seu belo Elogio dos Juízes:
‘Para encontrar a pureza dos Tribunais, é preciso
penetrar em seu recinto com o espírito puro’”[1].
...
O espírito e as lições de Roberto Santos são eternos. Descanso e paz à
alma desse gênio consagrado, mestre de todos nós.
Roberto Santos (01/12/1932 - 23 /07/2012)
[1]
Trechos do voto convergente do juiz Roberto
Araújo de Oliveira Santos, no julgamento, ocorrido há mais de trinta anos,
do Processo TRT RO 81/76 - Acórdão nº 7.849, publicado na Revista nº 17
(julho/dezembro de 1976) do TRT-8ª Região, p. 283/284.
4 comentários:
Roberto Santos foi um mestre; as palavras de Malheiros tornam evidente aquilo que a memória coletiva esqueceu: as grandes contribuições dessa geração ao desenvolvimento da Amazônia e às relações sociais como um todo.Muito bom poder ler isso. Grande abraço Paulo.
Minha homenagem ao Dr. Roberto Santos postei no blog
http://blogdoflavionassar.blogspot.com.br/2012/06/na-casa-de-roberto-santos.html
Linda e merecida homenagem que fizeste, Paulo!
Caríssimas e caríssimo,
Valeu mesmo... ;)
Abraços
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