segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Sobre milongas ou da arte de rir por último

É a segunda vez que me ocorre algo assim. Uma programação e, no caminho, um presente inesperado. Como são boas essas surpresas. Pois que, depois de encontrar num percurso o museu Casa Carlos Gardel, prometi a mim mesma que voltaria para visita-la. Afinal, estava fechada naquela noite em que saciava um desejo da minha pequena cidadã. Desta vez, saí de casa com Helena para ir direto até lá. Eu havia pesquisado na internet seus horários; feito um tal de tour virtual de 360 graus pela casa... estava pronta para entrar. E lá fomos nós a caminhar, em passadas tranquilas por calçadas largas, num inverno portenho que nos brindou com um fim de tarde ligeiramente fresco e claro. Tão boa a cidade silenciosa...

Cara a cara com a casa, com discos, vitrolas, jornais, fotos, toucador e tantas outras coisas da época em que o francês morou ali com sua mãe... E foi ali mesmo, na Jean Jaures, 735, que uma senhora interrompeu nosso passeio para dizer que ela e um grupo de narradoras fariam uma apresentação de contos e canções de milongas logo mais, na varanda interna de Gardel. Logo nos pusemos, eu e Helena, a buscar o melhor cantinho. Não foi difícil: o público não chegava a dez pessoas.

Uma a uma, seis mulheres de meia idade nos seduziram com belas histórias de outras mulheres, que souberam transformar suas dores em gozo. Todos os contos eram recheados por cenários e princípios próprios às milongas. São quatro os princípios. Por exemplo: se uma senhora entra acompanhada a um baile, ninguém pode ousar dirigir-lhe uma palavra, muito menos convidá-la para dançar; ao dançar, o casal não pode conversar ou trocar carinhos, nem sair juntos dali; os bailarinos menos experientes devem dançar ao centro, para não atrapalhar, à sua volta, aqueles que já têm a milonga nos pés. Eu fiquei absolutamente absorta. Dispersei pra fazer algumas fotos e passei a câmera pra Helena, que preferiu gravar algumas apresentações.

Aquelas mulheres eram muito boas naquilo que se propunham e as histórias eram, sim, muito interessantes também. A maioria, de Graciela López, com adaptações. Acho mesmo é que me identifiquei com essas narrativas. Quase uma catarse, talvez.

Em uma das histórias, uma dama estava encantada pelo cavalheiro que a tirava para dançar no baile. E ele ainda rompia o princípio do silêncio na milonga para dizer, ao pé do ouvido, o exato perfume que ela usava e, claro, tudo o que de lindo lhe provocava. Foi assim por várias semanas, até que a dama, já pronta a entregar-se ao cavalheiro, descobriu como o “adivinho” lhe descobria os perfumes: trocava a informação por duas taças de champanhe com a acompanhante dela. Injuriada, ela resolveu se vingar, trocando os frascos a cada baile e guardando consigo o riso de quem ri por último. Até optar pelo mais “cafona” dos odores e receber do cavalheiro o silêncio dos embasbacados. Agora que ela tinha virado o jogo, também optou por outra brincadeira: a dos olhares. Sim, porque passavam entre si e faziam de conta que não se conheciam, apenas se olhavam. Ai, o poder dos cheiros, que me fez lembrar a incrível obra “O Perfume”, de Patrick Süskind, e também que me deixou embasbacada anos a fio.

Em outra das histórias, uma doce senhora fazia questão de ganhar o apreço de um rapaz que tomava o ônibus quase à porta de sua casa. Ela jogava flores de sua sacada. As mais diversas. Uma por uma. E foram tantas as tentativas frustradas que resolveu dar a ele uma linda pedra preciosa que havia guardado de herança. Mas a pedra era um pouco grande e pesada demais. Linda, mas insuportável na cabeça do dito-cujo. A doce senhora passou então a levar flores para o túmulo do rapaz irredutível. Um “Nelson Rodrigues”, não?

Me deu vontade de escrever uns segredos para as contadoras de histórias e entrega-los nos envelopes que estavam nas cadeiras onde nos sentamos para assistir a apresentação. Mas preferi deixar só alguns pesos. Eu e Helena voltamos pra casa sorridentes. Olhando outros sete pontos turísticos ao redor da casa de Gardel, além de casas, botecos, bares, restaurentes e tantos elementos capazes de lembrar o ilustre imigrante. Imagine se isso acontece em Belém! Muito mais beleza teríamos na cidade.

Foto: minha mesmo

8 comentários:

Maruxa disse...

Esas historias de milongas son geniales. Te voy a regalar un libro que te va a gustar Eri!

Scylla Lage Neto disse...

É blues puro, Erika!
Portenho, mas ainda assim blues.
Tri-legal!

Marise Rocha Morbach disse...

É mesmo Erika e Scylla: é blues. E a palavra "milonga" é pura delícia.

Carlos Barretto  disse...

Ah!
Abasto, suas ruelas e casas, ornamentadas em fileteado argentino.
Vou voltar.

Erika Morhy disse...

Maru, no sé cual, pero es mio este livro. SEGURO! Gracias por su hermosa compañia de siemrpe. Besitos.

Erika Morhy disse...

Caro Scylla, devo dizer que nem de longe me passou o blues... mais uma boa provocação! obrigada!

Erika Morhy disse...

é, tenho escutar mais blues, Marise! bj

Erika Morhy disse...

vení, carlito! adoro os fileteados!