(O texto é de Abel Sidney, escritor. A inspiração veio após breve troca de conversa neste Blog em: "Uma Velha Grotesca", postado em 23 de setembro/2102)
- Pai, o senhor disse que o seu
quintal tem muitas léguas... É verdade mesmo?!
- Ô filho, isso é linguagem
figurada, poética.
- É nada, pai! Tudo depende do
tamanho da nossa imaginação.
- Nossa?!
- Eu, na verdade, nunca tinha
pensado em nada disso, mas a sua conversa com o tio Roger, me deixou intrigado.
- E você...
- Eu imaginei, então, que temos
centenas de léguas a percorrer em todas as direções, ao nosso redor, em um
círculo imaginário, que pode expandir-se ou contrair-se conforme a nossa
vontade ou necessidade.
- Eu só não sei ainda, filho, o
que farei com estes nossos domínios!
- Pai, o senhor anda esquecendo
nossas aulas de latim. Vou buscar meus rascunhos.
Lucas foi e voltou em poucos
segundos, tempo suficiente para eu relembrar a conversa que tivera com o Roger,
num domingo, na boca da noite.
Eu lhe dizia que me sentia
instigado a me enfiar literatura adentro, pelas amazônias que sei existir em
mim e à minha volta.
Ele respondeu como se estivesse,
à beira do Guajará, no Cais, lá em Belém, a escrever suas crônicas:
- Seu quintal poético é um
latifúndio que nenhum Sem-Terra ousa invadir. Tem a vastidão das palavras e dos
pensamentos. Está cercado por rimas embandeiradas que te aproxima da infância
fartamente amazônica.
Fiquei meio sem fôlego,
rememorando nossa infância na antiga Vila de Rondônia, situada às margens dos
fios do telégrafo deixado pelo Marechal, em tempos idos... Retomei, no entanto,
a conversa e lhe disse com unção e fervor, como se promessa estivesse lhe
fazendo:
- Vou sair, pois, por aqui, pelo
meu próprio quintal, de vastas léguas, a abrir minhas picadas.
O Lucas retornou e me despertou
do torpor da reminiscência breve ao ler em voz alta, compassada:
- dominìum, “domínio, propriedade”, ligado a domìnus, “proprietário, senhor de”, derivado, por sua vez, de domus
“casa, habitação, família, pátria”...
- E o que você infere?
Este “infere” do verbo inferir
(deduzir, concluir) é um convite ao arremate, ao desfecho do raciocínio, tal
como extraímos das nossas leituras coletivas do Sherlock Holmes nos sábados à
noite.
- Que o “senhor de tão vastos
domínios”, possuidor de tantas terras, há de cuidar delas como se fosse a
própria casa, pois estas léguas se estendem quintal adentro, ao nosso redor...
- Ainda não entendi – disse
fazendo-me de desentendido.
- Estou dizendo que é nossa responsabilidade
cuidar deste vasto quintal. Os seres que o habitam precisam do senhor, de um
senhorio, de um governante...
- E eu lá tenho poderes sobre
seres reais ou imaginários que habitam toda a Amazônia?!
- Você tem o poder de criar
enredos, de tecer a rede em que serão embaladas histórias que prenderão a
atenção de quem se dispuser a ouvi-lo ou lê-lo.
- Por falar em rede, filho,
estou com sono e vou tirar um cochilo, antes de retomar o trabalho.
- Vá, meu pai, vá – disse-me o
Lucas, como sempre fazia, quando me via sonolento – Vá e traga dos seus sonhos
o fio da inspiração, como das outras vezes.
Fui para a rede na varanda dos
fundos e me pus a pensar em tudo aquilo. O nosso pé de açaí estava carregado. A
mangueira, compartilhada com o vizinho da direita, se encontrava em fase de
floração. O jambeiro tinha folhas de um verde tão vivo que não ousei definir.
Olhei tudo aquilo e em poucos segundos mergulhei no mais profundo sono.
(Abel Sidney é Sociólogo, Escritor e Educador. Mora em Porto Velho-RO)
Um comentário:
É de nossa responsabilidade cuidar dos quintais: é sim!
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