“Gostaria
de passar um dia
sem
precisar abrir meu computador
e ser
inundado por imagens trágicas e banais.”
Numa certa manhã de domingo, relendo os escritos semanais de
Elias Pinto, chamou-me atenção o tema da violência (em: “Matadouro a céu
aberto”). As metonímias e as metáforas engendradas nos textos desse escritor
paraense transfiguram-se em imagens tal como se estivéssemos diante da tela de
cinema a roer as unhas, ou a ler um livro de Susan Sontag. Por se tratar de
minha lide, ou mais ainda, do enredo de minhas confissões científicas no
itinerário de médico e professor, a violência escorrida dos jornais –
bestializada, diga-se – deixa escorrer um aspecto particular da dor. Faz
lembrar a cabeça de João Batista colocada numa bandeja de inox, tal como em
“Salomé”. Daí a necessidade do comentário pulverizado de sentimentalismo e escassez
de riso.
Refiro-me aos Cadernos de
Polícia, em que o trágico se veste de banal. Só não me derrota pelo fato de
conviver com a sangreira diária no trabalho de cirurgião de emergência. Mas às
vezes, confesso: a naturalidade com que os jornalistas se atiram à retratação
deste mal belisca o lado esquerdo da minha alma. Só descubro que não sou insano
por que a serotonina (aquele hormônio do prazer), em mim, é imediatamente
substituída pela adrenalina (o do espanto). Percebo que ainda não tenho a
anodinia digna dos fotojornalistas (e olha que sou cirurgião!).
O sangue das notícias lembra-me Sontag em seu “Diante da dor dos
outros”, cuja capa traz um Goya evocando a exterminação e êxtase. Faz uma citação, assaz
surreal, mas não tão distante do real imagético expresso nos jornais de hoje, quando
fitamos, ainda bocejando dentro de pijamas, as fotografias dos encartes
policiais: “Nas expectativas modernas e no sentimento ético moderno”, grifa
Sontag, “cabe uma posição central à convicção de que a guerra é uma aberração,
ainda que inevitável. De que a paz é a norma, ainda que inatingível. Não foi
assim, é claro, que a guerra foi vista ao longo da história. A guerra foi
norma, e a paz, exceção”.
Portanto, a assertiva se molda cada vez mais no meu cotidiano de
emergencista traduzida pela carnificina do trânsito e dos tiroteios de Belém.
No outro lado das trincheiras desta guerra civil, uma visão opaca está no meu
olho esquerdo de cidadão, mas bastante translúcida no olho direto de cirurgião:
fazemos guerra e espetacularizamos a estupidez humana, pois criamos
deleites com filminhos em celulares, torcemos pelos piores desfechos das
telenovelas, fincamos cruzes em beiras de estradas e amontoamos caixões nos
cortejos fúnebres. É também assim que nos deparamos com o fotojornalismo de
todo dia: cadáveres empilhados e lágrimas inundando calçadas de cemitérios no
feriado de finados. Para a somatória resta o comentário pontiagudo de Sontag,
de Elias e da vida dos “cirurgiões de trincheira”, que atravessam noites pinçando
sangramentos.
Percebemos que os números da desgraça só não são maiores que as
tiragens dos jornais, que passaram a vender sangue das vítimas a preços
camaradas só para aumentar o lucro empresarial. Pior!!! Se juntarmos o mês dá
quase mil mortes entre os três hospitais de referência da cidade, sem falar nos
hospitais privados. Isso é número para tirar qualquer jornal do buraco, pois é
um espetáculo que se vende fácil.
A coluna do Elias além de apropriadíssima, revela uma nova
faceta “ecopulverizada” das bicicletas que, assim como as motos, estão
abarrotando ainda mais nossos pronto-socorros, como já não bastassem socos e
pontapés; balas e facas.
8 comentários:
Roger,em algum momento a violência nos alcança. Tava pensando na minha associação da carta do Tarot com a água-forte do Goya: O enforcado. O seu texto faz associações parecidas entre a sorte, a fortuna, e o infortúnio de ser alcançado, a qualquer momento, pela violência. As páginas de polícia tem feito a alegria de centenas de leitores, e estão salvando os jornais da baixa vendagem. É curioso e real que a violência nos coloque em uma condição de alienação e descaso. Adorei o texto - se é que posso me colocar sobre ele nestes termos? -, e tento, na medida do possível, ver a violência na trajetória histórica de uma norma. O texto de Sontag deixa evidente que a fotografia foi importante na banalização da violência; e eu diria mais: no gozo que a violência provoca em seus observadores. Valeu a postagem.
Muito bom. E as fotos são as mesmas. O corpo retorcido, talvez em paz, a alma, não. Pessoas cabisbaixas, garotos sorrindo, brincando com a violência, igual à da tv e games, funcionários do IML com suas luvas, fazendo mais um carreto e a manchete, muitas vezes até jocosa. É mais um assassinado, queridos ouvintes. Ainda bem que não fui eu. Voltamos ao faroeste. A moto e a bicicleta são os novos cavalos dos caubóis. Não seguem leis de transito. Não ha mão nem contramão, calçadas, nada. O capacete é usado apenas para ocultar o rosto no momento do crime. Uma guerra.
Marise, sua interpretação foi exata. Acrescentei a capa do Livro. Antes tinha ilustrado um quadro que vi no Prado, mas acho que não ficou legal e retirei.
Gozo: gostei dessa interpretação. Seria esse o maior motivo dos jornais ainda se sustentarem? É apenas uma tese, mas um de nossos tem sempre na capa uma mulher semi-nua e uma notícia dolorosa de violência. Uma fórmula bem azeitada para se sustentar? De certa forma os demais também se apresentam assim.
Bom você ter colocado a capa do livro Roger: O Goya tinha sangue frio e talento: coisa dos cirurgiões? Quanto ao gozo? Não é uma hipótese minha;é da psicanálise e do mercado.
Edyr, quando convidado para falar sobre traumatismo torácico, Brasil afora (ou Pará "adentro"), faço questão de citar essa nossa violência, mas não estampando fotografias, manchetes de jornal ou coisa assim. Mas mostrando números, apenas números - tristes números dos tristes trópicos.
Maravilhosa postagem, Roger, recheada de comentários interessantes.
Gostei do termo ECOPULVERIZAÇÃO, o qual peço licença para usar.
Um abraço.
O neologismo, salvo engano, pertence ao Elias Pinto. Mandarei um emeio para ele pedindo autorização. Acho que ele não se importará, diria Neruda: "A poesia não é de quem faz, mas de que precisa dela". Se precisas, então sapeca...
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