O século 16 foi o período da nossa história mais sulcado por
embarcações que tinham a missão de reconhecer o mundo e de mapeá-lo para o nosso
entendimento e deleite.
Naquele tempo os oceanos eram (e ainda permanecem) fontes inesgotáveis
de surpresas, e começaram a confirmar uma forte suspeita de que a complexidade
do mundo é tal que não devemos ousar nos aproximar dos seus fundamentos.
Séculos se passaram e nos arriscamos, mesmo sem ainda
conhecermos sequer o fundo dos mesmos oceanos singrados pelos nosso antepassados,
a romper essa ilha de trevas, de desconhecimento e de inércia na qual não nos
conformamos em viver.
E, com todo o respeito à física quântica e à astrofísica,
dissecar o cérebro humano nos seus aspectos morfológicos, neuro-bioquímicos e
fisiológicos, me parece ser a tarefa mais importante a ser executada pelo homem
neste momento histórico.
Os potenciais de exploração cerebral só não são maiores do
que os riscos envolvidos em se arranhar profundamente a ética e a moral. Afinal, manipular cirúrgica-
e/ou quimicamente o córtex normal apenas para angariar informações para a nossa
espécie, não é um ato isento de pesadas críticas.
Mas e se houver uma patologia envolvida? Podemos explorar um
pouquinho além do propósito inicial da cirurgia, estimulando áreas próximas?
Vou ilustrar com um fato do cenário neurocirúrgico contemporâneo,
publicado em periódico idôneo e reverberado mundo afora em congressos
específicos na área da Neurocirurgia Funcional.
Há poucos anos, durante procedimento de Neuromodulação (implante de eletrodos no cérebro para posterior estímulo elétrico),
visando tratar descargas elétricas anômalas em um paciente portador de um tipo
de epilepsia do lobo temporal, houve um pequeno desvio do alvo (região a ser
estimulada) e os neurocirurgiões canadenses se depararam com algo inusitado.
Ao se estimular as áreas “erradas” durante a cirurgia (que é
feita em grande parte em vigília plena), o paciente relatou lembranças
extremamente vívidas de um episódio ocorrido em sua infância, o qual
aparentemente era destituído de importância. Houve então uma descrição
meticulosa de odores, de cores de objetos, de frases longas ditas por parentes e
até de sentimentos experimentados naquele momento “esquecido” antes do estímulo.
Tudo foi documentado e publicado, e desde então o mesmo
grupo passou a ampliar a área de pesquisa, tendo havido relato verbal em um
congresso recente de mais seis procedimentos semelhantes, sempre aproveitando
cirurgias para epilepsia, e, é claro com o consentimento dos pacientes.
Podemos concluir, leigos ou não, que tudo relacionado à
memória está lá, guardado no cérebro. Absolutamente tudo registrado durante as nossas vidas. O problema é como acessar
essas informações.
Fica então a pergunta final no ar: se, na fronteira do saber, nem tudo estará dentro de possíveis inteligibilidades, até onde nos
levará um punhado de conhecimento que até poucos anos repousava nos braços da ficção
científica? Teremos capacidade de compreender o mapa cerebral que apenas começamos
a traçar?
O século 16 parece não ter acabado.
8 comentários:
Scylla, desde menina quando assistia ao Carl Sagan, na serie Cosmos, eu lembro de um episódio que ele falava dos "blocos" de memória acomodados no cerebro. Este tema é fascinante e torço ara que se avance nessa área.
Com o tempo a maioria poderá compreender o mapa, mas alguns já conseguem traçar a rota desde algum tempo. Existem mesmo muitas questões envolvidas nesse oceano, não é mesmo?
Sim, Silvina, há muitas peças soltas nesse mosaico de dimensões universais.
Bilhões e bilhões, como diria Carl Sagan.
Kss.
Sobre a inutilidade do conhecimento? É Scylla?! Tá legal, eu aceito o argumento. Pergunto apenas: É a inutilidade do conhecimento que confere "desvalor" à psicanálise? Ou é o conhecimento científico ao perder a noção de humanidade?
Marise, eu juro que não mirei na psicanálise e se acertei em cheio foi absolutamente acidental.
Rss.
Na verdade, nós humanos amamos não saber e todo conhecimento é bem-vindo, mesmo que nos leve a um caminho "não-correto" por algum tempo.
Vejo muito valor na psicanálise ainda, mas acredito que num futuro breve um novo Sigmund vai reformular muitos conceitos incorporando esses novos conhecimentos e aí então as "psicociências" poderão decolar novamente.
Aliás, a presença do componente psicossocial será sempre fundamental à conservação da humanidade.
Um abraço.
Valeu Scylla! Um abraço prá você também.
Scylla, as tecnologias previstas para o cérebro nos próximos 10/20/30/40/50 anos são espantosas...
...e proibitivas para alguns, os "clérigos" daquele mesmo ido Sec. 16, para quem tal século teima em artomentar a mente.
Claro que será (ou deverá? ou poderá?) elaborada uma "ética social-médica-da elite" entre os "escolhidos" e "os não escolhidos", como no caso da "memória".
Penso ser de menos interesse científico geral o acesso às memórias, lembranças vividas, lidas, vistas, cheiradas, sentidas (até porque, no exemplo, se não acessada também a de um terceiro, vivente daquele mesmo momento relatado, de nada adiantará. Ficará apenas a dúvida de um relato inventado, ou não, experimentado ou contado por outro "aquela pessoa).
Lembranças fazem parte do passado. Não mudam. São fixas. Não melhoram com o passar do tempo.
A humanidade terá mais interesse em acessar "memórias" externas, não vividas, nem lidas, nunca estudadas mas que, basta pensar sobre as mesmas, os dados (todos eles sobre o assunto pensado) simplesmente, vem!
Implantes de banco de dados universais (ou específicos; ou autorizados; ou conquistados através de uma demanda judicial; ou liberado a todos, na forma e quanto/como quiser, depois de uma decisão histórica do STF, de repercussão geral) com acesso neural, automático, numa estreita relação simbiótica entre a máquina e o homem, acredito, serão mais desejáveis.
Um outro "resultado" desta "mistura" e deste "novo cérebro" será, finalmente, a desnecessidade de um Deus ou Deuses.
Aí, Marise, a análise sobre "o que é" e "o que será" (pois, "o que foi" será claro) a humanidade terá, mesmo, que ser refeita. Te propões?
Ah, sem esquecer a fantástica possibilidade futura da "existência" do "cérebro" de uma determinada pessoa mesmo depois que seu corpo já não exista mais.
A "permanência" do ser, enfim...
Lafayette, seus comentários são pertinentes e beiram curiosamente a ficção científica, especialmente William Gibson (em Neuromancer) e Philip K. Dick (em Lies Inc).
Ficção e futuro confundem-se na memória.
Abraços.
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