terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Próximo!

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O urbano selvagem
Tenho a sensação de que a maioria que me atende preferia desabafar: "Não estou aqui porque quero, mas porque pre-ci-so".
E quanto maior a cidade, mais indiferente fica o morador. Como uma defesa. Mais indiferente a problemas que "não são da minha esfera". Como há milhões circulando diariamente, se você reclama atenção exclusiva num guichê, uma fila de gente que aceita as regras se forma atrás. Portanto, se você acredita que há problemas no serviço oferecido, nem vem, pois quem fica do outro lado do balcão, porque pre-ci-sa, não porque adora, grita sem muita consideração: "Próximo!"
Como aprendemos na infância, a expressão precisa de um reacionário, os incomodados que se retirem.
Parece uma contradição, afinal, os sumérios inventaram as cidades, os gregos as transformaram em Estado, os romanos as aperfeiçoaram e popularizaram soluções engenhosas de engenharia para civilizar tribos e antigos aldeões selvagens. A burocracia estatal se firmou como solução para problemas criados pelo convívio em massa em espaços apertados. Problemas que não tínhamos quando morávamos em cavernas, tribos, aldeias.
No ambiente labiríntico da burocracia estatal, a relação atendente & nós é tensa, ele está lá porque pre-ci-sa e ganha direitos específicos, imunidades, uma aposentadoria infinitamente mais justa que a nossa, privilégios do monopólio e estabilidade questionada do serviço público.
Muita gente não está onde está porque quer é um paradoxo urbano com que somos obrigados a conviver - a não ser que nos mudemos de chapéu e cuia para a casa do mesmo, onde Judas perdeu as botas, para plantar batatas, bananeiras e vermos se tem alguém na esquina.
A maioria gostaria de estar numa praia, numa rede, numa ilha deserta, num resort luxuoso, ou numa rede de uma praia de um resort luxuoso de uma ilha deserta a que só se chega de navio, ou até numa espaçonave, não num balcão atendendo às queixas de sujeitos que desconhecem leis, protocolos, imprevistos.
Estou aqui, pre-ci-so deste emprego, fiz concurso, fui indicado, escuto amigavelmente suas reclamações despropositais, para apontar com toda paciência e precisão o guichê correto, documento que falta, formulário a ser preenchido. E chego em casa afônico de tanto: "Próximo!"
No metrô, instalaram novas, como chamam aquilo, catracas? Mas não fazem "cá-tra-cá" quando acionadas. São duas lâminas de vidro verticais muito ameaçadoras, nada onomatopeicas. O sujeito enfia o bilhete. Elas abrem. Se não passar rápido, elas fecham, como uma tesoura, cortam você em dois. Não fazem "cá-tra-cá", mas "vupt". Intimidação que começa na entrada. "Tente me enganar, que te quebro!" O vupt pode virar crau!
Hora do rush. Depois de ultrapassarmos dentes afiados que excluem não pagantes, descemos pelo esôfago do transporte nada acolhedor, nos apertamos na plataforma até chegar nosso trem, o duodeno. Com movimentos peristálticos, viajamos pelos canais do intestino delgado, baldeação para o grosso, para sairmos do outro lado, noutra estação, no orifício de outro bairro, passando pelo esfíncter que dessa vez parece mais amigável e faz um vupt suave como um pum.  Andar e ser tratado diariamente como um toco de fezes deixa qualquer um abominavelmente selvagem.  Como em Londres, que tem o notório "mind the gap" (atente ao vão), o sistema de som dos metrôs daqui deveria, entre um quarteto de Mozart e uma ária de Bach, nos acalmar com uma voz doce, frases positivas e de cunho social, "quem espera sempre alcança", "seja justo e dê passagem", "calma, você vai chegar em tempo", "feche os olhos e pense numa rede de uma praia duma ilha deserta", "conte até dez, respire fundo", "acabamos de ouvir Concerto de Brandenburgo, allegro".
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Marcelo Rubens Paiva

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