quinta-feira, 7 de março de 2013

Leio, enfim, alguma coisa decente sobre o líder morto da Venezuela.


O legado de Chávez
Hélio Schwartsman

Chávez fez bem ou mal à Venezuela? Essa é uma pergunta difícil. Para começar, qualquer resposta que se dê, mais ou menos a metade do eleitorado brasileiro a tomará como mero exercício ideológico, desprovido de qualquer fundamento fático. Em segundo lugar, o legado do presidente venezuelano é de fato ambíguo, ostentando duas ou três medições que lhe são francamente favoráveis, mas também uma longa lista de problemas, alguns dos quais graves.
Na opinião média dos venezuelanos, que é a que mais conta, o líder foi aprovado com louvor. Eleito pela primeira vez em 1998, em meio a uma crise de legitimidade dos políticos tradicionais, repetiu o feito em 2000, 2006 e 2012 --sempre com mais de 54% dos votos-- , sem mencionar os referendos e reformas constitucionais em que suas teses foram aprovadas.
O segredo deste sucesso, como o de quase todos os êxitos eleitorais, está na economia ou melhor, na percepção que os eleitores têm de suas perspectivas econômicas. E Chávez foi capaz de reduzir a pobreza. A renda per capita venezuelana saltou de US$ 3.889 em 1998 para US$ 11.131 no ano passado. A miséria oficial (deixemos aqui de lado as sutilezas do cálculo) despencou de 20,3% da população para apenas 7%. Também foram registrados ganhos consideráveis na educação e na saúde, além de programas inegavelmente populistas, mas populares como a distribuição de casas próprias.
Se há um feito pelo qual Chávez merece reconhecimento, é o de ter forçado uma repartição mais equitativa da renda. O pecado coletivo dos dirigentes latino-americanos ao longo dos últimos séculos foi o de ignorar solenemente os pobres, tratando-os apenas como mão de obra pouco qualificada e barata. E nem é preciso recorrer a sentimentalismos ou metafísica esquerdista para perceber que isso é um erro. Nenhum país cresce de maneira sustentável sem criar um mercado interno digno deste nome e incorporar cada vez mais cidadãos às fileiras de uma classe média educada e capaz de produzir inovações.
Embora o líder bolivariano não tenha sido o primeiro a erguer a bandeira da distribuição de renda, ele soube enfrentar e derrotar as forças que se empenhavam em manter os velhos privilégios. Chávez poderia ser considerado um herói se a história acabasse aqui, mas ela não acaba.
Um pouco por causa de sua personalidade, um pouco pela necessidade de cumprir logo seus objetivos, o mandatário destruiu muita coisa no meio do caminho.
Mesmo a economia, que responde pelo grosso de sua popularidade, apresenta problemas sérios, que mais cedo ou mais tarde cobrarão seu preço aos venezuelanos. A inflação é elevadíssima, tendo atingido 23,2% em 2012 --e isso, vale lembrar, num contexto em que praticamente todos os países do globo foram capazes de contê-la em níveis bem mais baixos. Pior, ela vem acompanhada de desabastecimento. Falta um pouco de tudo na Venezuela, de itens alimentares como açúcar, frango, óleo de cozinha e farinha de milho, até energia elétrica. Os apagões, ao lado do racionamento, se tornaram rotina e quem mais prospera é o mercado negro.
Olhando para a frente, o problema é o investimento. Até por seu discurso, Chávez afastou o capital privado, e a PDVSA, a estatal gigante do setor petrolífero, que serviu de caixa para o projeto bolivariano, dá claros sinais de esgotamento.
Vale lembrar que o dirigente só conseguiu fazer o que fez porque surfou num período extremamente favorável para a Venezuela. O país guarda as maiores reservas provadas de petróleo do mundo (297 bilhões de barris), produto que viu seu preço médio saltar de US$ 12,3 o barril em 1998 para US$ 109,4 em 2012. A pergunta é se um administrador mais judicioso não teria conseguido extrair muito mais dessa bonança extraordinária.
Os maiores estragos, entretanto, estão fora da economia. Chávez aprimorou o estilo Fujimori de fazer política, que é o de esticar as instituições até o ponto de deformá-las, mas sem nunca promover um rompimento formal. Foi assim que ele criou uma Superpresidência, que pode mais ou menos tudo, e desfigurou o Judiciário, transformando-o num órgão dócil. Algo parecido ocorreu com o Legislativo, mas muito por culpa da oposição que, num gesto merecedor do troféu Darwin de melhoria da espécie, boicotou as eleições parlamentares de 2005, dando ao Executivo um quinquênio de supremacia absoluta sobre a Assembleia Nacional.
Outro importante ponto negativo a destacar é que ele aparelhou as estruturas do Estado, colocando aliados políticos em todos os cargos que conseguiu, mesmo que isso tivesse altos custos em termos de eficiência. A PDVSA foi vítima preferencial dessa política e, não por acaso, viu sua produção de petróleo cair nos últimos anos.
Chávez também intimidou opositores e jornalistas, mas seria rematado exagero falar em violações sistemáticas aos direitos humanos e ameaça à liberdade de imprensa. Os jornais locais sempre puderam fazer --e fizeram-- críticas duras contra o líder.
A muito mencionada e em vários círculos celebrada retórica anti-EUA é justamente isso: apenas retórica. Apesar de pintar dirigentes norte-americanos e outros alvos identificados com o capitalismo como o diabo, o comércio entre Caracas e Washington só fez crescer durante a administração do idealizador do socialismo bolivariano.
As muitas avarias institucionais provocadas pela gestão Chávez podem parecer coisa menor, sobretudo se comparadas aos ganhos na distribuição da renda. Seria um erro, porém, desprezar sua importância. Caberá aos historiadores do futuro emitir pareceres mais definitivos, mas eu acredito que elas poderão custar ao dirigente uma apreciação benigna da posteridade.
A questão central é que, no mundo contemporâneo, instituições são tudo. Já falei aqui do livro "Why Nations Fail" (por que nações fracassam), de Daron Acemoglu e James Robinson, em que eles mostram de forma bastante persuasiva que, no longo prazo, países só funcionam quando contam com instituições que promovem o poder político dos cidadãos e lhes permitem tirar proveito das oportunidades econômicas.
Chávez até maximizou as possibilidades de os mais pobres usufruírem das comodidades materiais do mundo moderno, mas fracassou em modernizar as instituições políticas do país. Ao contrário, ele as distorceu, fazendo com que se subordinassem, não aos interesses do Estado, como seria desejável, mas a seu projeto de aferrar-se ao poder, bem ao estilo do velho populismo latino-americano.
Na melhor das hipóteses, o país levará algumas décadas para recompor estruturas de Estado impessoais e com uma repartição equilibrada entre os Poderes. Definitivamente, Chávez não foi um estadista.
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Um comentário:

Erika Morhy disse...

Creio muito que ele deixou um legado muito mais de virtudes e conquitas a quem, tradicionalmente, foi excluído de políticas públicas, do que de prejuízos. Cada país da América Latina, nesse contexto de líderes mais à esquerda, encontrou caminhos diferentes, mas absolutamente respeitáveis... pelo menos para mim.