terça-feira, 2 de abril de 2013

“Zulusa”, o novo disco de Patrícia Bastos



Nasci do plim... duma fusão
Joãozinho Gomes, letrista em: “Zulusa”.

Quando vou a Macapá, costumo flanar pelas ruas e olhar pra aquele rio. Daí que numa dessas ouvi “Zulusa”. Foi notória a sensação de estar destampando o curativo que protege o embrião de nossa arte: brasiliana arte, amazônica arte. Lá donde nossos ancestrais se enovelaram e deram o formato espiralado de nossa mameluca molécula do Ácido Desoxirribonucleico - DNA.

É que Patrícia Bastos, a autora do CD, veio para bulir nesse coto umbilical e renovar nossas origens. Dá vontade de escrever no ritmo do disco, mas como não tenho essa magia - e pretensão -, arrisco em dizer que ela atinge a maturidade: é o seu melhor disco.  

“Zulusa” é fusão etimológica com fusão etnológica, mesmo. Mais que neologismo, mais que ponte aérea para Sampa e Belém É a lusofonia de nós, descendentes afrozulusíada, em forma de urros, vogais, atabaques, violões, contrabaixo, tecno-batida, fado, carimbó, marabaixo, boi e outro punhado de coisas. Destarte, “Zulusa” responde de onde viemos, onde estamos e aonde vamos - no sentido estrito da arte autopsiada pela própria cantora tucuju.

A capa já diz ao que veio: crianças miscigenadas canoam pelo vasto Amazonas. “Canoa voadeira”, a primeira faixa, retrata o neoverbo gaivotar, como se fosse canoar ou navegar a esmo no mar - ou no rio-mar - e na voz. Os dois verbos cabem na expressão artística de Patrícia Bastos, alcunhada no clique de Johne Sena. Ronaldo Silva, o letrista, ainda intera o disco com a conhecida “rodopiado”, além do belo poema que evoca a luta sangrenta pela terra, na voz de Pretto.

Chego ao ponto alto da letraria: Joãozinho Gomes, aí, enverga o verbo. Percebe-se em “U amassú i u dubradú” e “Incantu” a flutuação no trejeito nheengatu de se pronunciar o formato amazônico da fala de nossos ancestrais. Traz-se à tona essa língua morta que bem lembrou “Kararaô”, recente livro de Walter Freitas, ou na mesma dobrada de "Tuyabae Cuaá". Daí em diante, o fonema vira sonema e a clássica linearidade de Patrícia dá vez à voz em salvas, como se fosse o traçado eletrocardiográfico.

“Linha cruzada” cruza as batidas do trio Manari com o acordeon rasteiro de Toninho Ferraguti. Nessa composição (Leandro Dias/Carla Cabral), a voz gaivota entre o tema e o arranjo, num rasante de tons irisantes. Um deleite, ou mais: um alísio para nossos ouvidos. Adiante, em “Boi de Rua”, sai Ferragutti e entra o gigante Zé Pitoco, com seu clarinete alvissareiro, anunciando a chegada do Boi Garboso em seu movimento pendular. Patrícia embala o ritmo.

A mistura embrionária do áfrico-homem canoa na lusofonia camoniana sob forma de fado. É dor doída em “Miss Tempestade”. O texto expõe, ao bisturi de lâmina afiada, as entranhas do silêncio. Mas é o poeta Ricardo Corona quem goteja anestésico na veia de Vitor Ramil e no pomo de Patrícia Bastos. O resultado inebria.

“Mais uma” é a reinvenção de Patrícia na tecno-carona de Felipe Cordeiro. Mais uma demonstração de sua saltitante voz. Demonstra, assim, que é capaz de abraçar todos os ritmos populares. Louva-se o trato que Manoel Cordeiro e Trio Manari dão ao arranjo. Um primor.

Pulando para a faixa “Mal de Amor”, Du Moreira transforma a tragédia sheakesperiana em solenidade de encantamento. Dá vontade de levitar na melodia de Milhomem e chorar pelo amor do nego. Percebe-se que a descrição de um suicídio ao melhor estilo Ingmar Bergman: ”nada poderia ser mais classicamente romântico”.

Encerra-se com Guinga e Paulo César Pinheiro. Deles não preciso falar. Falo do piano plangente de Heloisa Fernandes e da voz dessa caboca. Da passagem de “O batuque” à entrada de “Ribeirinho”, de que falo, há um resfriamento dos pés à cabeça, deixando o ouvinte estupefato, gélido; só os tímpanos tremulam com a gaivotagem da voz e a pele engelha à cada nota do piano. Patrícia, neste momento, atinge a erudição e Ozzetti, o produtor, se emociona.

Eu também...

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