Nasci do plim... duma fusão
Joãozinho Gomes,
letrista em: “Zulusa”.
Quando vou a Macapá, costumo flanar pelas ruas e olhar pra aquele rio. Daí que numa dessas ouvi “Zulusa”. Foi notória a sensação de estar destampando o curativo que protege o embrião de
nossa arte: brasiliana arte, amazônica arte. Lá donde nossos ancestrais se enovelaram
e deram o formato espiralado de nossa mameluca molécula do Ácido
Desoxirribonucleico - DNA.
É que Patrícia Bastos, a autora do CD,
veio para bulir nesse coto umbilical e renovar nossas origens. Dá vontade de escrever
no ritmo do disco, mas como não tenho essa magia - e pretensão -, arrisco em dizer
que ela atinge a maturidade: é o seu melhor disco.
“Zulusa” é fusão
etimológica com fusão etnológica, mesmo. Mais que neologismo, mais que ponte aérea para Sampa e Belém É a lusofonia de nós, descendentes afrozulusíada, em forma de urros, vogais,
atabaques, violões, contrabaixo, tecno-batida, fado, carimbó, marabaixo, boi e
outro punhado de coisas. Destarte, “Zulusa” responde de onde viemos, onde
estamos e aonde vamos - no sentido estrito da arte autopsiada pela própria cantora tucuju.
A capa já diz ao que
veio: crianças miscigenadas canoam pelo vasto Amazonas. “Canoa voadeira”, a
primeira faixa, retrata o neoverbo gaivotar, como se fosse canoar ou navegar a
esmo no mar - ou no rio-mar - e na voz. Os dois verbos cabem na expressão
artística de Patrícia Bastos, alcunhada no clique de Johne Sena. Ronaldo Silva,
o letrista, ainda intera o disco com a conhecida “rodopiado”, além do belo poema
que evoca a luta sangrenta pela terra, na voz de Pretto.
Chego ao ponto alto da
letraria: Joãozinho Gomes, aí, enverga o verbo. Percebe-se em “U amassú i u
dubradú” e “Incantu” a flutuação no trejeito nheengatu de se pronunciar o
formato amazônico da fala de nossos ancestrais. Traz-se à tona essa língua morta
que bem lembrou “Kararaô”, recente livro de Walter Freitas, ou na mesma dobrada
de "Tuyabae Cuaá". Daí em diante, o fonema vira sonema e a clássica
linearidade de Patrícia dá vez à voz em salvas, como se fosse o traçado
eletrocardiográfico.
“Linha cruzada” cruza
as batidas do trio Manari com o acordeon rasteiro de Toninho Ferraguti. Nessa composição
(Leandro Dias/Carla Cabral), a voz gaivota entre o tema e o arranjo, num rasante
de tons irisantes. Um deleite, ou mais: um alísio para nossos ouvidos. Adiante,
em “Boi de Rua”, sai Ferragutti e entra o gigante Zé Pitoco, com seu clarinete alvissareiro,
anunciando a chegada do Boi Garboso em seu movimento pendular. Patrícia embala
o ritmo.
A mistura embrionária do
áfrico-homem canoa na lusofonia camoniana sob forma de fado. É dor doída em “Miss
Tempestade”. O texto expõe, ao bisturi de lâmina afiada, as entranhas do
silêncio. Mas é o poeta Ricardo Corona quem goteja anestésico na veia de Vitor
Ramil e no pomo de Patrícia Bastos. O resultado inebria.
“Mais uma” é a
reinvenção de Patrícia na tecno-carona de Felipe Cordeiro. Mais uma
demonstração de sua saltitante voz. Demonstra, assim, que é capaz de abraçar todos
os ritmos populares. Louva-se o trato que Manoel Cordeiro e Trio Manari dão ao
arranjo. Um primor.
Pulando para a faixa “Mal
de Amor”, Du Moreira transforma a tragédia sheakesperiana em solenidade de
encantamento. Dá vontade de levitar na melodia de Milhomem e chorar pelo amor do
nego. Percebe-se que a descrição de um suicídio ao melhor estilo Ingmar Bergman:
”nada poderia ser mais classicamente romântico”.
Encerra-se com Guinga
e Paulo César Pinheiro. Deles não preciso falar. Falo do piano plangente de
Heloisa Fernandes e da voz dessa caboca. Da passagem de “O batuque” à entrada
de “Ribeirinho”, de que falo, há um resfriamento dos pés à cabeça, deixando o
ouvinte estupefato, gélido; só os tímpanos tremulam com a gaivotagem da voz e a
pele engelha à cada nota do piano. Patrícia, neste momento, atinge a erudição e
Ozzetti, o produtor, se emociona.
Eu também...
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