"... e que a tecnologia desumanizada mais assusta do que consola"
José Camargo, cirurgião.
Quando residente de cirurgia, depois de um dia escaldante de
trabalho, Nestor ficava até tarde da noite a catar conchas e caracóis nas radiografias torácicas. Achava aquele exame básico, porém envolto de mistérios.
Mas o mistério maior era diferenciar os segmentos pulmonares. O
pior deles era, no frontal, separar o segmento 6 do lobo médio. E
o que dizer da língula, que fica lambendo o coração? Nestor ficava até tarde da
noite separando conchas de caracóis neste exame básico e envolto de mistério.
- O que "cê" faz até agora, menino?
-Separando
conchas de caracóis. Respondeu.
Ela balançava a cabeça de um lado para o outro ao gesto de quem
estivesse com pena. Não entendia como um médico tinha que catar
conchas e caracóis numa chapa do peito. Também não entendia como algo básico
ao mesmo tempo guardava tanto mistério. Lá em Vila Valqueire, onde morava,
chamavam este tipo de gente de bocó.
No dicionário bocó quer dizer infantilidade. Para Manoel de
Barros, bocó é algo similar a tonto; gente acrescentada de criança; exceção de
árvore; homem que costuma conversar com as águas. Bocó é também aquele que fala
com os sotaques das origens e, na terra de Nestor, menino bocó é o mesmo que
menino aru ou abestado.
Para d. Sonia, Nestor entrara para a academia dos arus e toda vez que ouvia falar em conchas e caracóis soltava aquela gargalhada.
Para d. Sonia, Nestor entrara para a academia dos arus e toda vez que ouvia falar em conchas e caracóis soltava aquela gargalhada.
Certo dia Nestor passeava pela Rua da Carioca quando avistou um sebo. Adentrou. Deu de cara com um Fraser e Parè, cuja edição já ultrapassava
10 anos. Leu nele que existe uma maneira de diferenciar conchas de caracóis. Era
a salvação, portanto. Depois de pechinchar, comprou os quatros tomos
a preço de Jerimum na Xepa, mas era quase o valor total de um plantão noturno que fez
no dia do seu aniversário.
Após uns 12 anos Nestor retornou ao hospital para rever
amigos. Deu de frente com d. Sonia, já secretária do Dr. Iberê, chefe da
Radiologia – que havia ensinado muito a Nestor, menos catar conchas e caracóis. Após a discussão de certo caso, que juntava radiografia e as modernas tomografia e ressonância, o chefe atinou para
um detalhe que Nestor havia alertado.
Desde então d. Sonia o estima.
6 comentários:
Supimpa!
Pequenos detalhes cirurgicamente tratados deixam nas dobras do tempo o tempero do ensinamento.
Parabens Roger!!!!!.
Cilão, bom revê-lo...
Dudu, na do beira do mar as conchas e caracois revelam quão misterioso é o mar.
"botei lá no Facebook", como se diz por aqui, na capital de Rondônia.
se botei, compartilhei, como o faço, agora, também aqui.
Roger Normando é meu amigo de infância (Vila de Rondônia, Território Federal de Rondônia, 1976/77). Nos vimos, depois disso, em duas ocasiões. Uma no Rio de Janeiro, quando ele fazia residência em cirurgia torácica e, décadas depois, em Belém, onde ele mora e acumula muitos fazeres/lazeres no campo da medicina e da educação, além da literatura de (boa) inspiração & suor e das peladas de competente futebol com os amigos.
Aqui, nesta crônica, ou conto ou narrativa de qualquer ordem ou sentido, ele se excede. Daí o convite à leitura.
Acabo de aprender, com ele, que sou um bocó. Com orgulho!
Abel, Fernando Pessoa também se achava um bocó ao escrever "todas as cartas de amor são ridículas. As cartas de amor, se há amor, tem de ser ridículas". Tem coisa mais aru do que isso? Salve os bocós. Demorei, mas descobri.
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