(Para Gabriel Garcia Márquez e Machado de Assis, que se fingem de morto)
Minha família vivia numa cidadezinha no interior do Acre, anos 70, e tinha eu dez de idade quando ouvi falar de Geraldiano e Ivaniano, filhos de imigrantes nordestinos soldados da borracha. Eles tinham uma zanga e travaram um duelo que ficou registrado nos anais da cidade.
Os dois foram criados juntos, mesmo tope, mas na adolescência se arranharam pela formosura de Lígia. Chegaram a ensaiar uns pegas, mas a turma do deixa-disso sempre estava de plantão. Eram atarracados e de gênio atravessado quando se esbarravam num copo de cachaça. O próprio delegado tratava de mantê-los distantes e as famílias cuidavam de fazer com que não se encontrassem.
A rusga entre os dois acompanhou-os com as rugas do tempo até os cinqüenta anos. Aristides, o prefeito devoto de São Francisco, rogou clemência para selar a paz, já que era amigo de ambos. Ademais, o munícipe andava combalido, em cadeira de rodas, vomitando sangue, desenganado da medicina da capital por Barriga d’água. Tinha os dias contados, pois na época o transplante de fígado carecia do conhecimento de hoje. Toda a cidade se ressentia do apelo e seria a última de suas obras humanitárias. Como um fazia aniversario dia 21 e outro dia 23 de julho, trataram de marcar o selo da paz numa data equidistante, ou seja, 22, sábado.
A festa no salão paroquial iniciou sob a bênção do padre Alberto, mas findaria sob o tridente do satanás. Os dois, logo na chegada, até esboçaram aperto de mão, mas acerto mesmo foi com o senhor dos infernos, pós-talagadas da “mardita”. Foi quando se esbarraram no banheiro. O ambiente ficou cinza. O estopim ocorreu e cada um puxou um canivete da cintura, como dois cangaceiros, e afiaram a lamina na ponta da língua. Pularam pro terreiro de festas só eles: olho no olho, dente rangendo e goela rugindo. Depois o duelo ficou explícito, ao ar livre, até separarem de vez. Tarde demais: saíram capengando com cortes profundos no tórax, abdome e braço.
Cada família hospitalizou o seu em suas casas, pois rejeitaram ir ao único posto de saúde, com medo das algemas do delegado Elesbão. Ambos padeceram de longa agonia, trancafiados em seus quartos. Foi quando Geraldiano recobrou da embriaguez e, diante da dor outro e cada vez mais perdendo ar, expôs certo grau de preocupação com Ivaniano. Que por sua vez ficou impressionado ao saber que o algoz orava pela sua alma à medida que sua barriga crescia junto com o arrependimento. Cada um começou a suplicar para que o outro não morresse, e as famílias ainda mantiveram as orações até o último pingo de fé. A cidade viveu o suspense com todo tipo de esforço para esticar a alma daqueles dois, que continuavam acamados - agora febris e sem dispor ao menos de um curandeiro kaxinauwá.
Após 48 horas de agonia, os sinos da igreja dobraram. Luto e suspense: o prefeito acabara de entregar o corpo ao Espírito Santo.
Deixa estar que os dois ouviram as badaladas e cada um em sua rede achou que os sinos soavam pelo outro. Geraldiano morreu de melancolia no dia seguinte, chorando pela partida de Ivaniano. Que morreu duas horas adiante chorando as águas do Purus por Geraldiano.
Na lápide de cada um ficou a inscrição: “Neste povoado de cidadãos pacíficos, cuja fé cegou, a violência teve um momento de manifestação condolente entre si, mas não menos daninha.”
Labareda, do bando de Corisco
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