Velasco vendia
velas. Partia de Manaus em seu batelão singrando a bacia amazônica, até
alcançar a foz do Juruá. Depois cortava aqui, atalhava ali por rios largos e acolá
por estreitos, até os cafundós do Envira, em
carga plena e água rés ao costado. Vinha tenteando os barrancos com as peças de
cera. O ultimo vilarejo já era quase terras peruanas.
Em cada empreitada gastava três, quatro meses.
Nunca adoeceu; nunca se acidentou. Aprendeu o oficio com o pai que costumava
dizer que aquelas águas guardavam os perigosos Pium e Candiru. Conheceu toda a
ciência da floresta pela convivência com ele, admirador de Euclides da Cunha,
que geografou todos aqueles rios e barrancos e também as expedições de Rondon e
a historia da telegrafia.
No verão, entretanto, Velasco retornava a Manaus, por conta da seca dos rios.
No verão, entretanto, Velasco retornava a Manaus, por conta da seca dos rios.
O comércio das velas - por vezes trocava por
guaraná, balata ou comida - estava ameaçado pela eletricidade. Ele vociferava
sobre a luz elétrica, que acabara de chegar a Manaus. Dizia que apagava a
sombra do amor brandido entre quatro paredes e ainda tinha o risco de choque. O
discurso midiático era para continuar aquele comércio, mantendo a tradição do pai,
comandante do famoso Alaíde. As que mais vendiam eram as perfumadas que mandava
buscar na feira do Ver-o-Peso, em Belém. Tal como bom vendedor não lhe faltava
verbo e galanteios às mulheres que tinham o mocotó roliço. Era pra elas que
guardava as aromáticas.
Sempre que tinha oportunidade laçava uma nativa e,
com toda a lábia, deixava assombro aos pensamentos dos maridos quando saiam
para pescar e caçar. Também levava na proa a lenda do Boto para prevenir as que
surgissem buchudas. Já saiu muitas vezes pelas portas do fundo por conta de
marido irado.
Mas num barranco, Feijó rio abaixo, próximo ao
paralelo 10, morava uma morena cor-de-jambo, que havia acabado de perder o
marido por conta de uma ferroada de Candiru. Inflamou, supurou e quando deram
conta de subir pra Manaus, o membro estava podre e só restava a amputação, às
pressas. Mesmo assim, a infecção já tinha corrido pelo sangue e parado nos
pulmões, alcançando a morte.
Velasco soube dessa história ao vender velas para
velarem o morto. Lá estavam apenas a viúva, dois bacuris pequenos – um de colo
– e três vizinhos em posição de condolência. Enterraram-no no fundo do terreno,
próximo à cacimba.
De soslaio, ele percebia naquela cabocla de luto um incenso especial que exalava o perfume dos sândalos.
Até que esperou o dia seguinte, boca da noite, para
voltar, aportar e enxugar as lágrimas da viúva. Naquela noite trouxera uma vela
que exalava o aroma da priprioca. Amou até o último fumego do pavio. Prometeu
jamais voltar a vê-la.
N’outro dia apareceu com uma sete-dias-sete-noites,
que liberava patchouli; amou até o último facho de luz jurando, desta vez,
desaparecer em definitivo.
No terceiro ressurgiu com uma de metro, em castiçal
de meio metro, vaporizando alecrim. Quando saiu da tapera, a luz da lua, para apanhar água da cacimba pro
asseio pós-coito, olhou pra trás e viu que a chama nunca mais se apagou e a
fragrância de todas as velas havia se unificado naquela coitada.
Era início de verão e
por lá se embrenhou.
Até hoje Velasco vive de mãos dadas com o tempo derretido ao pé de cada vela
balsamada.
Labareda, do bando de Corisco
2 comentários:
Divulguei assim:
"Para os corações fortes, que não tem medo de vela, mortos e assombração!
Está avisado!!!"
Vão se assombrar, sim, mas é com a beleza das linhas bem traçadas, como o roteiro do batelão do Velasco no inverno amazônico - rio cheio, tão cheio como está o peito deste moço acriano-paraense-amapaense, que está sempre a nos brindar com estes escritos que incitam a vela dos nossos barcos a singrar e singrar, adiante pelos rios da vida!
Abel, trago nos arredores da minha meia-idade todo o entorno da infância em barras de caramelo, bola de balata, caroço de buriti, semente-olho de guaraná e história pra boi dormir. Tudo isso, se não serve pra nada, diria Manoel de Barros, serve pra poesia. Por isso singramos essa Amazônia desvairada, feito menino do buchão, declamando poesia, como fizeram Rondon e Euclides da Cunha. Outra coisa: volte sempre. Todos comentam que a tua verve é continuação do próximo capítulo. A gente já fica acocorado só na espreita, ou melhor, de mutuca, diria Velasco com suas velas aromáticas.
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