Não me trato,
nunca me tratei, embora respeite os médicos e a medicina
Fiodor
Dostoieviski, em: “Notas do Subsolo”
E quem não gostaria de começar um texto médico com
um Dostoieviski metralhando o anfiteatro de Galeno e ainda blasfemando o deus Asclépio, filho de Apolo?
“Memórias do subsolo”, de onde buia a epígrafe, é um jardim de flores mortas
adubada com esterco de camundongos, cujo jardineiro poderia ser Freud...
Mas não é! O jardineiro é o próprio Fiódor, arando solos mordazes, a ponto de soterrar
nosso fôlego ao nos asfixiar num arquétipo de desafiar o maior dos super-humanos.
Ao parear Dostoievski com as doenças e seus cataclismos, repleto de porões e insubordinações,
deparo-me com Maria Clara.
A menina de três anos não tem voz e não sente o ar ventar pelo
nariz, pois tem a glote fechada por conta de uma sequela adquirida aos sete
meses de idade. Ela respira por uma cânula no pescoço que se assenta na
traqueia. Quer chorar, mas ninguém ouve, quer aprender a linguagem, mas
ninguém ensina. Ela tem uma beleza cabocla de tingir nossos corações com as
tintas da beleza encontrada num canto qualquer dessa Amazônia desvairada e silenciada.
Ao ver Maria Clara eu me vi Dostoiéviski: “sou um homem doente”.
Ao pousar no setor de pediatria do hospital regional
de Marabá, sudeste do Pará para conversar com os pais, só me apareceu a mãe.
Elas vivem às margens da rodovia transamazônica. Maria Clara nasceu de uma
transa amazônica sem destino, às ribeiras do Tocantins. Aos sete meses adquiriu
pneumonia e foi bater no CTI, onde necessitou de aparelhos para respirar e acabou obtendo
sequelas cicatriciais graves, por isso a traqueostomia,
preço de sua misericórdia. Sem pai, a mãe assumiu papel da miséria das dores. Desde então, quando
chora, o silencio da menina escorre pelo canto do olho e a voz vira a lágrima.
Peguei-a no colo e fomos ao centro cirúrgico. O
anestesiologista arpoou uma agulha milagrosa na jugular, e a pôs a dormir.
Passamos o aparelho na sua garganta e descobrimos a causa da sua afonia: fenda subglótica fechada, por isso as cordas vocais não vibravam. Tudo
cortinado logo abaixo das cordas vocais, daí o ar que saia dos pulmões não estimulava a fonação. O objetivo, ali, foi recanalizar a via aérea.
Assim como Maria Clara, ainda existem inúmeras crianças
e adultos na mesma agonia. A cirurgia endoscópica, ou aberta – nada simples, diria – pode recobrar não só a respiração, mas também a toada da voz.
No voo de volta, mesmo com missão cumprida, acabei ficando
com transtorno bipolar, ao manter a luz de leitura acesa. Senti os solavancos
da aeronave, como se tivesse na zona de convergência inter-tropical, enquanto todos bebiam suco de pêssego languidamente e liam a
revista de bordo. Ler Dostoiévski é viajar dentro de uma área de borrasca, portanto não
aconselho ninguém a bisbilhotar “Notas do subsolo” acima do solo, sob risco de
virar trambolho dentro da própria pele e gerar pane seca na própria glote.
No mais, perdoem-me por ter filosofado
tanto, são os anos de subsolo à luz de lamparina! Permitam-me, permitam-me, pois a
razão é coisa sagrada, mas é apenas para satisfazer o homem, nada mais. Já a narrativa é manifestação de vida como um todo, ou melhor, de toda a humana vida, aí
incluindo a razão e todas as formas de se coçar e extrair a raiz quadrada de Maria Clara, para refazer o duo medicina-literatura em meio ao
redemoinho que enovela nossas dores.
Roger Normando, médico e professor de cirurgia da Universidade Federal do Pará
3 comentários:
A sensação é de estar sendo guiado pela mão de Deus, ou no mínimo, com sua outorga, né Roger?
A literatura tem propriedades curativas, sabemos.
O Roger tem tomado a pena nas mãos como se manejasse o bisturi. Sua escrita rasga as carnes da alma e suscita reflexões, sempre necessárias.
Desta viagem curativa e filosófica à Marabá ressalta um fato: o vasto campo para intervenções solidárias. Precisamos multiplicar isso para diminuir dores e abrir picadas e horizontes!
Brilhante, caro Roger. Profundo, instigador e revelador de um conhecimento de mestre, que leva à reflexão da condição humana.
Postar um comentário