Tenho uns poucos livros emprestados que jamais devolvi
- uns quatro. Um me fascina: “War surgery”, do comitê internacional da Cruz Vermelha. Antonio Venturieri, cirurgião paraense
que esteve no Afeganistão, emprestou-me, por saber do meu fascínio pelo tema. Esqueci de devolver.
Dia desses folheava o calhamaço de 350 páginas para
entender as armas de guerras e as lacerações que provocam nos órgãos internos de
um guerrilheiro abatido. Porque os fuzis já não ecoam só na Síria. O estampido está
nos morros cariocas e daqui a pouco zunirá pelos bairros do Jurunas, Guamá, Terra firme e
aqui debaixo do prédio onde moro.
Outro dia, no maior hospital de trauma de nosso
estado, um homem adentrou pela emergência, já gaspeando. Fora baleado por
determinada facção do Jurunas. Ao exame físico havia uma brecha no rebordo
torácico. Era arma de guerra. Aí já não é só zunido, é trovoada, fuzilamento.
No caminho de ida a Salinas, à frente da policia
rodoviária federal, na Belém-Brasília, havia um carro totalmente danificado, guinchado
a três metros do chão, encaixado no outdoor,
numa arte plástica bem elaborada, com dizeres de alerta sobre o risco da imprudência
nas rodovias - afinal de contas é verão por aqui pela amazônia, tempo de aproveitar as férias
e meter o pé na estrada.
Pouco adiantou. A sinistralidade continua elevada e,
se somarmos às motocicletas urbanas, a lista embaça o caos no trânsito. Na
volta da viagem a arte já não existia. O carro já não estava. Quem sabe uma
motocicleta fosse mais representativa.
E sobre esfaqueamentos? Arma em extinção!
Nos anos noventa, um artigo original mostrou, no HPSM, que a principal causa de ferimentos no tronco era arma branca. Certa
vez, numa micareta na atual João Paulo II, a ambulância socorrera três
esfaqueados no mesmo carreto. Dois deles tinham ferimentos graves no coração, e
outro, várias estocadas no abdome. Todos sobreviveram. Se as lesões cardíacas
fossem por arma de fogo, certamente a chance de vida seria bem menor.
Hoje, os tiros e as motocicletas ultrapassaram as armas brancas, inclusive no
sertão da Paraíba, terra das peixeiras.
Surge, agora, uma série televisiva sobre violência, ao
olhar esbugalhado da sala de emergência. Com narrativa romanceada ao modo de
Tess Geratssen, Edyr Proença ou Rubem Fonseca, “Sob pressão” nada tem a ver com
as series glamourosas americanas totalmente hi-tech, hi-fi ou wifi. Depois
“Profissão repórter” faz abordagem epidérmica sobre as salas de emergências do
Rio de Janeiro. Parece muito claro que a emissora direciona seu portfólio para
uma página bruta da nossa sociedade, não só eviscerando as deficiências do
atendimento e a alta taxa de homicídios, mas, acima de tudo, o cotidiano do
cirurgião-mago que, noite adentro, além de tirar coelhos da cartola, reza por
milagres de salvar vidas - ou pelo menos postergar a morte.
O fagocitado “War Surgery” deixa escorrer a idéia que
a dor das guerras é maior que as estatísticas: Em certos conflitos, o fardo dos feridos de guerra é maior que as
conseqüências de saúde pública. É aí que a série de TV se engancha, mas os
números de nossa incivilidade sangram as finanças do Estado, cortam a carne e
deixam poças de coágulos a escorrer pelas valas abertas de nossas cidades, e Belém fica entre as dez
capitais mais violentas do país (mapa da violência, 2016).
Artigo publicado originalmente em "O liberal", 03/08/2017