“(...) todos os curandeiros eram malditos
sanguessugas que faziam mais mal do que bem...”
Do personagem Bukerel em O físico, de Noah Gordon
Rob
Cole é um órfão inglês que, após a perda dos pais, torna-se um assistente de
curandeiro e deseja vencer a doença. Depois de adulto ouve falar de
uma fabulosa escola de medicina na Pérsia, liderada por Avicena, para onde
viaja a fim de aprender os segredos da cura. O cenário é da Idade Média e está
romanceado em O Físico, de Noah Gordon. Nota-se que o termo físico servia também, à
época, para designar os médicos.
Diego
Rivas é um cirurgião espanhol da Galícia que, após visitar os EUA, toma confiança em realizar operações complexas mediante única mini-incisão
(uniportal). Abraça a técnica operatória, passa a divulgá-la no mundo médico e
ganha devotos. Depois dos 40 anos, comemorados no Brasil, ouve falar da escola
de cirurgia da China e, em pouco tempo, estará num hospital de Shangai, onde
foi aninhado. A intensa prática o levará a se aprimorar e, pouco depois, passa
a ensinar sua técnica, mundo afora.
A
pretensão aqui não é contar, com precisão, tópicos da cirurgia contemporânea, mas
tão somente narrar a grande aventura de um nômade que, dos caminhos de Compostela, segue para o oriente, em época onde
fronteiras estrangeiras fecham-se com trancas de castelo medieval, sabendo-se
que a China de hoje, além da riqueza industrial, tem outra maior que encanta: o
saber.
Da
saga do jovem Rob, vê-se certo paralelo de poucos homens que ainda ousam, nos
dias de hoje, romper fronteiras. Isto nos faz crer que a muralha da China tornou-se
apenas ponto turístico em meio à tênue linha do passado da lembrança da divisão
das estepes. Os chineses de hoje abordam com grande propriedade e leveza a partilha
de ensinamentos, tal como o persa Avicena, personagem de Gordon.
Usando
figuras reais que se tornaram mito - como o próprio Avicena-, Diego procura
desvestir-se de um possível olhar maniqueísta ocidental, para traçar um
panorama da riqueza cultural e social não só da China, mas de outros tantos lugares
que visita – muitas vezes o Brasil –, para mostrar as origens do eterno aprendizado
entre os povos, independente de suas idiossincrasias e tez racial. Isso o possibilita
mesclar sabedoria com abraços fraternos.
Sem
deixar de apontar as origens antropológicas de cada elemento que edifica a
formação do cirurgião moderno, Diego transfere para cada aprendiz de sua
técnica o mesmo olhar com que o sábio Avicena fita Rob Cole, mistura típica de
fascínio que acomete qualquer pessoa que abandona seu húmus e seu modo de
pensar, para se pôr de pé diante de outra sociedade.
No
meio desse caldeirão, o cirurgião-nômade tempera todas as questões filosóficas
e dados históricos com as cores e os cheiros do mundo, deixando os temores de
lado a cada caminhada, sob a epiderme de Rob Cole.
O
nomadismo de Rob e os ensinamentos de Avicena convivem no mesmo paletó de Diego,
que faz de seus périplos pelos quatro cantos um tempo histórico num templo vivo e
presente no imaginário coletivo de seus séquitos, que também passam a visitá-lo
entre a Galícia, seu umbigo, e Shangai, sua Pérsia.
Lembremos
das lendas da Távola Redonda e dos cavaleiros de armadura para nos debruçar sobre
o fervilhante caldeirão cultural no qual os homens d’antanho se fitavam serenamente.
Depois vieram os diálogos entre Dom Quixote e Sancho, até se chegar aos embaraços
criados, hoje, por aqueles que travam a troca do conhecimento. Diego afugenta
tudo isso, pois é personagem encantado e vivo, que parece sair das páginas da
literatura rútila. É um desses que duvidamos poder existir, mas que convive ao
nosso lado, nestes tempos arredios e de olhares atravessados.
O
Diego de hoje se veste de Rob Cole para sentar na poltrona e
esperar as portas travarem para decolagem. Assim que aterrissa reverte-se em
Avicena e passa a ensinar pela luz da convivência, não importando o que esteja
no foco daquele que busca extirpar, suturar, aliviar ou curar, seja horizonte
amplo ou campo estreito, seja olhar grande ou pequeno.
Roger Normando – Professor de Cirurgia Torácica,
Universidade Federal do Pará, Brasil.