A ciência não avança,
a ciência alcança
a ciência em si.
Gilberto Gil / Arnaldo Antunes, na canção "A ciência em si"
Como há muita chuva na Amazônia, nada mais espoleta do que olhar para o céu e ver se uma gota de ideia cai no olho, molha alma e fertiliza cérebros para gerar boa ação.
Foi o que fez uma dúzia de estudantes de uma universidade pública
da Amazônia. De tanto apanhar chuva lançaram uma ideia sustentável: recolher
água da chuva que escorre pelas bicas para matar a sede. Cognominaram de Amana Katu; Vem do tupi-guarani e significa chuva boa.
Como fazem? Recolhem a
água da bica, cheia de impropriedades bioquímicas, e transformam em água potável
por meio de método simples e de baixo custo, utilizando bombonas da indústria
alimentícia (tambores plásticos que armazenam até 240 litros).
Os jovens estudam à
margem do rio Guamá, Belém, e na outra margem existem algumas ilhas, cujos
moradores não têm água potável. E no que deu? Os garotos atravessaram o rio e
foram levar o projeto para os ribeirinhos. Deu foi certo e eles foram bater no vale
do Silício com o objetivo de apresentar, in locu, a
montagem. Ficaram entre outros três programas mundiais, após competirem com
27 países e mais de 130 projetos. É a primeira vez que o Brasil chega à final
desta competição californiana.
Pra transformar a travessia de rio em travessia de mar, eles ergueram as mãos pro céu e pediram ajuda ao deus Tupã para receber doações. Deu certo e os garotos
pegaram o Ita do norte. Dois deles, Paulo Vinicius e Waleska,
caíram nas graças da Google e foram mais além: participaram de treinamentos na
empresa. Uma enxurrada de sonhos para estes garotos!
Na realidade, o que os
estudantes fizeram, em forma de experimentalismo científico, estamos todos os
dias a fazer, por conta da escassez de recursos na
região. Um dos campos mais ávidos para inovações deste tipo é a medicina, especificamente a cirurgia.
Vivendo (ou
sobrevivendo) em hospitais sucateados e carentes de recurso, volta e meia
lançamos mão de idéias e recursos sustentáveis que, se estivéssemos diante de
uma câmara técnica de uma grande multinacional seria certo a guilhotina em
praça pública sob trovões e relâmpagos. Decerto, na esfera californiana, o destino
seria outro, mesmo que a ideia custasse a bagatela de um paneiro de açaí. Mas o
que nos impulsiona é a teia de idéias dos garotos do
Guamá, que foram da idade da pedra à idade do silício num salto maior que a universidade
onde estudam.
Um parêntese: avanços
tecnológicos estão cada vez mais presentes na cirurgia, mas o ritual de hoje é: “idéia boa” é aquela capaz de ter financiamento e gerar lucro. Portanto, se o
mundo é high-tech, o
Amana Katu deveria ser enterrado, assim como a arte cirúrgica “sustentável” e
seus lampejos.
A razão de tudo é que o
caminho da tecnologia é escorregadio, encarece o sistema e dificulta o acesso aos
desfavorecidos (leia-se SUS). Fazer adaptações ou ajustes pode causar uma fúria
a grandes multinacionais ou a uma fração da sociedade. Mas não à d. Celestina, que numa operação por vídeo no hospital universitário, foi-lhe retirado um tumor
canceroso do pulmão. Obteve alta já no segundo dia, utilizando método
moderno e minimamente invasivo. As vantagens são: menos dor, infecção e tempo
de internação. O custo é alto com material descartável (insumos) e uma operação
como essa pode passar de 10 mil reais. O custo da operação de d. Celestina,
usando uma ideia sustentável para obter o mesmo resultado, foi bem menos que 500
reais.
Nada disso significa pendurar a cabeça do cirurgião numa guilhotina e aumentar
riscos, pois tudo deve ser feito com critério clínico e responsabilidade. A
equipe cirúrgica deve estar habilitada para realizar esse tipo de
procedimento. Só vai resplandecer se o cirurgião olhar para os exemplos do
Amana Katu e dispuserem-se a entrar na chuva sem esquecer de olhar para a
segunda margem do rio.