“Eu
trocaria uma mina de diamantes por um copo de água pura da nascente.”
Julio Verne, em: Viagem ao Centro da Terra (1864).
Julio Verne, em: Viagem ao Centro da Terra (1864).
Desde quando o homem dominou o fogo as coisas nunca mais
foram a mesma. Criou a religião e suas vertentes aguçadas, inventou a arte como
forma de redimensionar a roda da vida, viu a filosofia como a primeira sombra
de sua alma e só bem depois brechou a ciência pela luneta de Galileu.
Pelos meandros da construção desta modernidade, um sábio grego,
na ilha de Cós, transformou igreja em hospital para separar a doença da
religião. Inventou a cura, e o que era para ser discreto e incauto ganhou
proporções atemporais.
Daí veio um francês e, com toque de gran chef, misturou gema de ovo, óleo de rosas e terebintina
e untou num ferimento de guerra. Parè descobriu
que a mistura provocava cicatrização rápida. Assim nasceu a cirurgia moderna recheada de
arte para dar gosto e densidade à medicina.
Depois chegou a tecnologia, soltando faísca pra tudo que é ponta.
Puseram a pusilânime faísca em chamas e as labaredas da ciência atearam fogo, a
ponto de viajar a pontos diametralmente opostos: da lua ao centro da célula.
E depois de todos esses nuances, o Sapiens, incansável e assaz criativo, não se conformou e resolveu
colocar calor até mesmo nas discussões. A verdade é que os contrapontos são os
verdadeiros combustíveis às muitas faíscas que existem em nós, e quem não
souber pôr a cabeça no congelador é melhor nem entrar no calor dessa discussão.
Assim nasceram os congressos e os fios deste texto.
A questão é que os congressos médicos discutem cada vez mais
ciência e tecnologia e cada vez menos arte. Há tendência de tê-la apenas como uma
vicissitude que deve ser guardada no escaninho de cada serviço, para que em
eventos ganhe a alcunha de hands on, só
para soar mais contemporâneo.
Num evento recente para lançamento de determinado dispositivo
na área da cirurgia, em São Paulo, um dos coordenadores flambou nossas idéias e
descreveu um novo produto para suturar pulmão. Relatou que o dispositivo
mecânico, independente de quem use, passa a ser equânime - seja ao jovem
cirurgião, seja ao catedrático – e a costura terá a mesma estética. Com isso os
resultados melhoram, a indústria tufa os bolsos e se retira a arte da ribalta
cirúrgica.
Próximo de cem por cento da nossa massa cerebral, para não
falar de outras vísceras menores, está consagrada à contemplação e à adoração
do high-tech, deixando um mínimo
espaço à turgescência da criatividade e idéias sustentáveis, por isso, a arte cirúrgica deverá desaparecer lentamente, só que o lado desumano da
tecnologia é o custo, e nem todos têm acesso a essa “mina de diamante”. O evento
de São Paulo foi fascinante e nos pareia com os grandes centros mundiais, mas move
uma geometria piramidal que desfavorece a base, onde estão os mais necessitados
- aqueles que batem à porta dos hospitais públicos rezando que sua operação seja a laser.
Mas do outro lado do país, com faísca no cérebro, firmeza nas
mãos e pendor no coração, um pequeno grupo de cirurgiões do SUS vem aprimorando
a arte de realizar ressecções pulmonares sem essa tecnologia toda (conhecida
como OPME). Tudo na munheca - passando fio, esticando o dedo e dando nó. Se o
único problema é o tempo cirúrgico mais esticado, por sua vez, esse grupo nos
desafoga do caos que representa a desigualdade social em nosso país.
Havemos de estar aptos a reconhecer que a grandeza da arte
cirúrgica não é apenas ego insuflado, se do outro lado da linha existem
necessitados.
Por fim, não há qualquer tutorial para se criar idéias, pois vivemos de lampejos, haja vista que, perante incertezas, sabedoria é errar pela
insistência, tão somente para não se desistir da vida, pois sempre há um
canceroso ou um tuberculoso do outro lado da rua precisando de nossos laços e
de nós.
Insistiremos com a arte enquanto houver esfomeados.
Texto do Jornal da Sociedade Brasileira de Cirurgia
Torácica adaptado para este blog