No
ambulatório pergunta-se ao jovem Esdras Edgar, prestes a concluir o grau
médico, quando se sentiu pela primeira vez abraçado pela medicina. Não
respondeu de imediato. Olhou para o próprio umbigo e depois estendeu e recolheu
o olhar para Isadora, sua colega, ao lado. Após alguns
segundos rememorou todas as páginas de seus PDF e, sem gaguejar, respondeu
lucidamente: “foi quando colhi a primeira história clínica.”
Relatou
naquele momento que havia recebido a aula teórica de propedêutica e, aguçado
para colocar em prática, vestiu-se a caráter: jaleco alvinho com caneta BIC no
bolso, calça nova e tênis branco com mais de mil léguas de pisadas. A aula é estruturada numa sequência desde os primeiros
sintomas e como evoluem ao longo do tempo de doença - se melhoraram, se
pioraram. Também se usa medicamento e se há resposta. Algo sobre familiares
e modo de vida. A última parte da anamnese inclui hábitos, como o de fumar ou mesmo
de praticar esportes.
Todas essas
informações dão ao médico o claro entendimento da natureza e da origem das
condições clínicas e como elas se encaixam dentro de um padrão. É o ritual acadêmico. A partir de
então é gerado o diagnóstico. Depois vem a segunda anamnese, a terceira, e a
partir de então temos um roteirista. É o que se considera alfabetização
clínica.
Tinha razão,
o Esdras. É o primeiro contato físico com pessoas doentes e normalmente
acontece no início do terceiro ano... E não dá pra esquecer o professor.
Veio-me a lembrança de Bettina Ferro e Souza no momento daquela
resposta. Aí o tempo parou e me rendeu na coleira, apertando minha jugular. Como as
pessoas passam depressa, sussurrou o tempo, em meu cangote. Parece que a gente
consegue parar o tempo e perceber que ele – o próprio tempo -, feito visgo, adere à pele e vai bater no juízo.
Ao ver a
fotografia da professora Bettina estampada na página de um
editorial da Revista da Sociedade Brasileira de Cardiologia eu revi aquelas
primeiras aulas dos porões da Santa Casa de Misericórdia, onde tínhamos que
aprender a escutar e auscultar pacientes. Título do editorial: “Perfil dos
cardiologistas brasileiros: um olhar sobre a liderança feminina...”. Destaque à
ativista médica que nos ensinava como ouvir a onomatopéia tum-tá das batidas
cardíacas ou aquecer as mãos para apalpar o fígado. Bettina era baixinha e
magérrima, porém sua estatura e seu peso nada tinham a ver com sua capacidade de ser mensageira de Asclépio.
Fora da
sala de aula costumava-se ver Bettina aos domingos, cedo-cedo, subindo as
escadarias da Beneficente Portuguesa para frequentar a missa, pois era uma
religiosa fervorosa. Caminhava com uma leveza que lembrava a sua forma de se
expressar e de ensinar a ler eletrocardiograma.
Àquela
altura, meados da década de oitenta, quase aposentada, teve suas apostilas transformada
em livro por uma grande editora brasileira. O livro tinha dois tomos. Um deles,
de pura prática médica, cortejava a coleta de informações para se compor uma boa
história clínica junto com o exame físico e era o que se chamava de adestramento do exame físico. Era o que mais tinha a ver com aqueles muros e pilares. Assim, o
Brasil conheceu a maior obra da literatura médica oriunda dos porões da Santa
Casa. Ademais, foi espelho para uma geração de professores que até hoje mantém
a aura daqueles aprendizados como esteio do ensino dentro dos muros
universitários de todo Brasil. Consoante a tais fatos, doou seu nome para um
dos Hospitais da UFPA.
Naquela resposta
jovial estavam todas as reverberações que o lançaram a responder à pergunta. E,
no meio de cada um que sofreu influência ontogênica daquele embrião de ensino,
não há como abolir de dentro do peito um sentimento que te lambuze, quando se
revive. A tentativa de esquecer não passa de um destempero vil que se veste de
fantasminha e vem fazer assombração em noites de alumbramento.