sexta-feira, 1 de maio de 2020

O Enigma de 1918

Há cerca de dois anos, enquanto passeava pela University Road, nos arredores de Coral Springs, Florida, a Barnes&Noble expusera Book of medicine. O calhamaço reunia as maiores notícias médicas em 150 anos do New York Times.
De repente, ao despertar certo domingo em meio à pandemia, fiz ranger as folhas daquele livro ao abrir minhas pálpebras piscantes na página 21 de março de 1997, em que o periódico Science publica os estudos do virologista Jefferey Taunbenberger sobre o agente da pandemia de 1918, até então desconhecido à luz da ciência.
A notícia correu o mundo oitenta anos após a epidemia, com assinatura da bióloga e jornalista Gina Kolata, coordenadora da coletânea do NY Times. A lâmina afiada de Taunbenberger retirou amostras do Alaska, Nova York e Kansas. Ampliou o RNA do vírus pelo método revolucionário de PCR. O trabalho durou dois anos. Os 15 mil nucleotídeos (vigas que sustentam o RNA) estavam estilhaçados em 200 pedaços e a outra parte estava carcomida pelo tempo. Montou-se o quebra-cabeça e concluiu-se que o vírus era um H1N1 de alta letalidade, encontrado entre aves e porcos.  
A onda gripal de 1918, que só acabou em 1920, em sua maioria entrava pelos cais dos portos, em que pese inicialmente ter viajado em mochilas e faringes dos soldados americanos que haviam treinados no interior do Kansas e enviados à França, no fim da guerra. Alguns já chegaram febris; depois contaminaram ingleses e chegaram aos portos de Espanha e Portugal até findar no Brasil - mesmo sem a globalização de hoje, veio bater aqui no Curro Velho.
Inigo Crespo, um amigo e cirurgião de Zaragoza, envia-me algumas fontes sobre a epidemia de 1918, alertando-me para a injustiça histórica. Aponta que os ingleses começaram com essa pavulagem. Segundo a historiadora Adriana Goulart, a idéia de Espanha esconder a doença foi noticiada pela London’s Royal Academy of Medicine. Mais tarde, porém, poucos acreditavam neste fato, pois as rádios madrilenhas, ávidas por noticiar o mundo, não deixaram de informar sobre a nova gripe.
Jornais da Trípice Entente aproveitam e disseminam que os miasmas que ancoravam em portos espanhois vinham em garrafas de náufragos lançadas ao mar pela tríplice aliança e, quando abertas em praias ou portos, havia cheiro de rosas partindo o ar, cujas pétalas eram enxurrada de vírus - uma espécie de castigo à neutralidade dos cervantes à guerra. Aldir Blanc cria a metáfora de Nova Granada de Espanha, na canção Corsário, por tratar de potente arma de guerra.
A humanidade mal contabilizava 30 milhões de mortos nas trincheiras da guerra e tinha que somar às covas comunitárias mais 50 a 100 milhões com a nova Gripe, equivalendo ¼ da população mundial.
Só oitenta anos depois, com o progresso da Genética e Biologia Molecular, a exumação dos cadáveres conservados em formaldeído puderam ser reexaminados. Retirar espécimes de pulmão com restos de secreção para aplicar técnicas modernas precisava de coragem e determinação. Tudo foi escrito por Kolata em: “Flu: the story of the great influenza pandemic of 1918 and the search for the virus that caused it”. O artigo de Taunbenberger ainda levou o prêmio científico do ano da conhecida revista inglesa The Lancet. Conclusão do pesquisador: “Eu não posso sustentar um fragmento de gene e dar a resposta a tudo. O que temos é apenas o início de uma história”. 
Dito e feito. O achado do virologista foi ensaio para a epidemia seguinte, a Gripe Suína de 2009, procedente do México. Foi uma questão de desengavetar o que existia para criar a vacina capaz de conferir imunidade contra o H1N1, e aplicar na população. Deu certo.
Com os laboratórios de Biologia Celular aos olhos, o que podemos ver sobre o SARS-CoV-2 é uma nova história ao microscópio. Sabemos que já houve o seqüenciamento do RNA do vírus, ainda na China, mas até surgir vacina e estudar as mutações, teremos que entender a recente história das epidemias. E se jubilarmos passado não tem como entendermos as nossas atuais incertezas, que abrem picadas à luz de lamparina para nosso desespero e mal-presságio.

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