Traqueoplastia (ou laringotraqueoplastia) é terminologia médica, e significa restaurar e remodelar a traquéia e/ou laringe (vias aéreas) por meio de cirurgia e/ou endoscopia. É indicado em pacientes acometidos por afecção inflamatória/infecciosa, traumática ou cancerosa.
Com número grande de
doenças nas vias aéreas como resultado de internções prolongada em CTI, o
governo do Estado do Pará criou um programa chamado TRAQUEOPLASTIA, por meio da
Secretaria Estadual de Saúde (SESPA), após intervenção do Ministério Público Estadual
(MPE) a partir de 2015 por meio judicialização. O programa social iniciou em
2016.
A história começa
quando o MPE ouve a queixa de cerca de seis familiares, liderada por uma jovem
estudante de direito, de origem marajoara, cujo irmão, um vaqueiro, havia
levado um tiro na cabeça ao defender de assalto a fazenda de seu
patrão. Foi acudido e levado ao maior centro de trauma de Belém. Lá ficou
entubado por vários dias. Sobreviveu a todas as complicações possíveis, mas
saiu com seqüela na respiração, por isso carregava uma cânula de traqueostomia
no pescoço, que também ocultava a voz. A irmã, que tratou de procurar um
serviço público para sanear a questão, achou no hospital universitário Barros Barreto
(UFPA) a especialidade Cirurgia Torácica. Depois de quase um ano na lista de
espera, resolveu procurar seus direitos no MPE.
Não obstante, a jovem
estudante tentou avaliar a possibilidade de tratamento privado, mas logo
percebeu que não tinha reserva financeira pra arcar com tantas despesas. A
complexidade do caso, assim como o tempo necessário para o tratamento, deixou-a
angustiada. Ganhou espaço num dos jornais da cidade para denunciar a lentidão
do hospital e o grande drama que viviam esses pacientes. A diretoria
do hospital universitário nos convocou para responder à imprensa, pois aquele
hospital não era referência em cirurgia para correção de defeitos da traqueia -
aferiu o diretor. Em princípio discordamos, mas depois revimos as condições
hospitalares, pois este tipo de operação precisa de material específico e
cuidado diferenciado. Percebemos que ali estávamos diante de um tema complexo,
cujas complicações são elevadas e graves, mesmo em centros mundiais
referendados.
Pela falta de um
centro de referência e o isolamento geográfico da Amazônia, o MPE impôs à SESPA
a criação de um centro especializado em Belém. Coincidentemente, por ter
expertise no tema, fomos convocados, agora para montar o projeto. Com multas
bastante elevadas estipuladas pelo MPE, a SESPA teria que se desdobrar para
montar o serviço, do contrário, o Estado teria que ressarcir aquele jovem
vaqueiro e mais meia dúzia que amontoaram queixas ao MPE. Asfixiada, a SESPA se
viu na obrigação de criar um programa para durar seis meses, especificamente
para tratar aqueles pacientes judicializados e dar resposta ao MPE.
Demorou mais de ano
entre idas e vindas à SESPA, pois o projeto teria que ainda tramitar por
diversos setores do governo até se concretizar. Em agosto de 2015, recebemos
chamado que havia sido aprovado. Em outubro de 2016 o serviço foi implantando, inicialmente
para durar apenas seis meses.
Seis meses após o
início, mais de 20 pacientes traqueostomizados se apresentaram ao ambulatório.
E o que era para seis meses dura até hoje, com novos e novos casos, cada vez
mais complexos, até se transformar nessa representação nacional.
Durante esse período
já realizamos mais de dói mil procedimentos endoscópicos, o triplo de consultas
e cerca de 120 pacientes com operações abertas complexas.
Realizamos
simpósio com transmissão ao vivo para todo o Brasil; recebemos mais de 20
cirurgiões torácicos brasileiros e alguns estrangeiros. Vários residentes já
passaram por lá, de diversas especialidades ligadas às vias aéreas. Dois deles
vieram do Chile, e passaram dois meses em atividade, participando dos
procedimentos endoscópicos-cirúrgicos.
Recentemente,
durante o XXIII de cirurgia torácica da SBCT (Sociedade Brasileira de Cirurgia
Torácica), realizado em São Paulo, fomos laureados com o prêmio Antonio Ribeiro
Netto, pelo desafio social do programa social na Amazônia. Igualmente, ganhamos
o terceiro lugar entre os pôsteres apresentado, que deverá se tornar um artigo
científico.
O hospital Galileu,
onde é desenvolvido o programa é um hospital de 100 leitos, localizado na
Grande Belém, distante 20 minutos do centro.
No primeiro dia de
atendimento, já havia vários pacientes. Escolhemos como primeiro caso para
operar - o mais simples. Depois vieram mais casos, até pegar embalo. Nosso
maior medo, o de encontrar casos bizarros e complexos, foi lentamente superado
a cada resultado cadenciado pela boa resposta pós-operatória. Três elementos
foram fundamentais, do ponto de vista técnico: estudar bastante, ler
obstinadamente outros autores, praticar e convidar grandes cirurgiões de fora
de nosso Estado para analisar criticamente o programa. Do Oiapoque ao Chuí,
literalmente, fomos recebendo cada um. As operações complexas foram ficando
simplificadas, até se tornar rotina. Outrossim, desenvolvemos adaptações às
clássicas técnicas, a qual tomamos como melhoramentos.
O programa se
desenvolve em apenas um dia da semana, aos sábados; realiza-se cerca de três a
quatro procedimentos endoscópicos ou cirúrgicos por cada dia, mas sempre
estamos ultrapassando a meta. O programa sobrevive com tecnologia básica, pois
ainda não temos acesso a dispositivos de ponta. Ou seja, o lema é: fazer bem o
básico.
Mais da metade dos
pacientes procedem do interior do Estado, que é composto por oito milhões de
cidadãos e tem o tamanho equivalente à vizinha Colômbia, o terceiro país em
extensão da América do Sul.
Três cirurgiões
titulados pela SBCT compõem o serviço e são os autores deste livro. Existe um
CTI de cinco leitos específicos para cirurgia de vias aéreas, além de
enfermarias com médicos clínicos, fisioterapeutas e fonoaudiólogos com vivência
no tema e visitas diárias. O Hospital não dispõe de sala de emergência, mas há
um CTI preparado para receber pacientes que necessitem de urgência e emergência,
com todo material prontamente disponível para se realizar desde traqueostomia a
dilatações e entubações, sempre com um dos cirurgiões de sobreaviso e a
presença do intensivista.
O programa é
administrado atualmente pela OS ISSAA, que sempre tem apoiado, juntamente com a
própria SESPA, grande fomentador. Entretanto ainda estamos carentes de alguns
pontos na área de tecnologia, por exemplo, ainda usamos cânulas metálicas em
nossa rotina, já bastante ultrapassadas; carecemos de moldes laringotraqueais,
de laser e de broncofibroscopia. Na área humanitária, ainda nos falta um
serviço voltado para crianças, outra área delicada, pois não são poucas as que
necessitam de uma abordagem com expertise.
Texto: Roger Normando, Responsável Técnico pelo Programa TRAQUEOPLASTIA e Professor da disciplina de Cirurgia Torácica - Curso de Medicina - Universidade Federal do Pará