sábado, 27 de janeiro de 2024

E o que Darwin tem a ver com pulmões e transplantes?

Na natureza não há velhice, não há decrepitude, há apenas plenitude ou morte

Juan Luis Arsuaga, paleontólogo espanhol.

Mestre Quixote, um compositor de ritmos de carimbó, nativo de Benquerença, tinha uma respeitada história de apanhador de caranguejo. Ganhou a alcunha de Quixote por apresentar uma mancha vinhosa no pescoço que se estendia para o lado esquerdo da face -defeito de nascença -. Quem lhe codinomeou foi Corisco, parceiro letrista, para homenagear o engenhoso personagem de Cervantes.

Mestre Quixote tinha passado uma noite amaldiçoada e quase deita no caixote: viu a morte visitar seus pulmões. Sem gostar de médicos, decidiu procurar um por imposição de sua Dulcineia e de um amigo feirante.

Antes de alcançar o bico da ladeira, Mestre Quixote, que tinha o peito magro, em formato de barril, parou ofegante, procurando inflar o fôlego com o vento que descia do rio Caeté, ao ritmo da maré. A cada dez passos voltava a sentir que não podia respirar. Parava. Viu que a respiração ficava encalacrada a cada escalada e, como maneira de chegar ao destino, permaneceu imóvel com as mãos na cintura, sobrancelhas travadas, fisionomia tensa, até que o ar, aos poucos, devagarinho, tornou a passar pelas narinas.

Passada a ladeira, já no meio da praça, quase defronte à igreja, voltou a parar, pelo mesmo motivo. Passou o braço pelo pescoço da esposa e encostou-se a cabeça no ombro dela. Melhorada a respiração, aproveitou e esticou o olhar pelo entorno. Havia, entre as casas baixas em torno da Praça, a meia-morada de beiral saliente, doutor Labareda, especialista geral em falta de fôlego. Havia reinaugurado o seu consultório depois de uma temporada na capital e no estrangeiro.

- É uma-aquela de janela azul celeste, com uma placa junto à porta – reconheceu. Chegou ao médico, içada por sua Dulcineia apaixonada.

Na sala de espera refletia, à frente de "Cais de Sagração", ainda resfolegando ar. Tentou entender o livro, mas sua alfabetização e oxigenação não permitiram acabar a primeira página. Conseguiu apenas entender como regalo de um amigo assinado como Dom Elias de Pindaré.

Mestre Quixote estava naquele destino por ter passado a noite anterior em claro, com a cabeça apoiada nos punhos da rede, pés roçando a esteira de palha, no quarto iluminado pela chama da lamparina a queimar querose, já que a luz elétrica acaba às dez. Em seguida sentiu o fôlego curto, numa ânsia de sufocação. De cabeça levantada podia respirar melhor e a sensação sufocante de arrocho, que por vezes o atormentava durante o sono agitado, foi se espaçando, sem que o ar de todo lhe faltasse. Lembrou que havia iniciado uma tosse desde alguns dias, que vinha acompanhando de forma sinistra e se agravara na noite anterior.

    - “Vá se consultar com o doutor amanhã, homem teimoso” — aconselhou-lhe a esposa, ao seu lado, numa noite que parecia não findar. Levantou-se para lhe trazer mais uma vez o chá de erva-cidreira e um gole d’água. Aquelas palavras tilintaram em seus ouvidos, conferindo lembranças de uma noite amaldiçoada. Havia de procurar um doutor, decerto.

    - “Em dois tempos, o doutor dá um jeito nessa sua falta de ar. Aproveita e já pede logo uma chapa do peito, para ver se é só velhice ou se tem alguma mancha”, disse-lhe Dulcineia. E ele, levando à boca o teimoso porronca de suas incursões pelos manguezais, disse para a Dulcineia: - Se doutor desse jeito em doença, doutor não morria...

    - "Deixa de ser teimoso. Doutor dá jeito em doença, sim; só não dá jeito pra morte".

Quando o dia amanheceu, mergulhou no passado e reviu seus conceitos. Durante suas incursões pelos manguezais do Caeté, fumava seus porroncas para soltar o fumacê para afugentar mosquitos e garantir seu apurado. Celecindo, o feirante que revendia sua produção, já havia lhe alertado que aquilo queimaria seus pulmões e um dia a conta chegaria, sem direito a gorjeta.

Decidiu que no dia seguinte procuraria um doutor de respiração.

Em “A morte contada por um Sapiens a um Neandertal” revela discussão sobre envelhecimento e morte pelos rastros da paleontologia moderna, assuntada pelas descobertas da biologia molecular. O livro desvela o neodarwinismo: “a natureza não envelhece". Ou seja, quem envelhece é o homem e seus animais de estimação. "Há espécies que duram mais tempo porque são mais fortes e são menos devoradas. Um tubarão vive mais que um polvo porque não é comido. Há seleção natural, acidentes e inimigos. Um acidente é uma tempestade ou um inverno muito frio; um predador é um inimigo". Essa é a clássica lição darwinista, revela José Arsuaga, no livro acima citado.

Por esse ângulo todo médico seria neodarwinista, particularmente os geriatras e os que se dedicam à longevidade, assim como cientistas e veterinários. As chamadas doenças crônicas, próprias dos velhos, seria o melhor exemplo para explicitar essa fronteira do pensamento evolucionista. Para o neodarwinismo a variabilidade genética atua sobre a seleção natural - campo minado para discussão com geneticistas. Conceitos como os de mutação e recombinação gênica foram somados à clássica teoria da evolução de Darwin, com o objetivo de ratificar e embelezar suas ideias, mesmo não tendo ele explicado como a variabilidade surge nos organismos.

Por essa brecha é que emerge o neodarwinismo, que certamente explica não só por que o tabagismo danificou a elasticidade pulmonar de Mestre Quixote, capaz de alterar sua longevidade, mas também como os estudos do britânico-brasileiro Peter Medawar, ganhador do Nobel de Medicina, ao pesquisar a rejeição de enxertos e a descoberta da tolerância imunológica adquirida, foram fundamentais para a prática de transplantes de tecidos e órgãos, e assim, prolongar a vida.

Quando Mestre Quixote faleceu, o mesmo Corisco que o codinominou, deixou em sua lápide um poema. Sabá de Abadia, sambista que viera conhecer Benquerença e visitar a praia de Ajuruteua, soube da história de Quixote, por meio de Corisco, numa roda de samba. Conheceu o poema e juntos compuseram um samba que sofreu mutação pelos nativos, e se tornou hino na marujada. Ficou eternizado na festa de São Benedito:

Morro devagar

Passo a passo

Sem importunar

Quem seja meu par

Não peço perdão

Se meu pulmão

Sem combinação

Parar de arfar

Parar pra dizer: "Pra mim bastou. Quem ficou, ficou"

E a sobra é história

É pura memória

Sim, foi uma delícia o quanto durou...


sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

A metalinguística pelos jardins da oncologia

 A clever turn of phrase

From your vocabulary
Ingenuine desire
To know a little more

Leo Sidran, na música: The art of conversation

 

- Que espécie de tratamento eu vou receber?

- Injeções... Eu já disse antes.

- Mas... onde? No tumor mesmo?

- Não... via endovenosa.

- E... quantas...?

-Três vezes por semana.

- E uma... operação... seria possível ?

(“Por trás da pergunta estava um medo indisfarçável de se ver estendido numa mesa de operação. Como a maioria dos pacientes, ele [o personagem Pavel Nicolayevich] também preferia receber qualquer tipo de remédio por mais longo que fosse”­).           

     O diálogo acima ocorre no jardim do hospital-cenário em “Pavilhão dos cancerosos”, do escritor russo Alexandre Soljenitze, Nobel de literatura. Revela os primórdios da quimioterapia na esperança de frear o câncer e o caminho para a sala de operações.

O tecido social da obra é o Uzbequistão dos anos 1930 e 40, quando o mundo via nos tumores malignos um único destino: o purgatório. A radioterapia, outra modalidade de esperança, ainda ensaiava os primeiros raios no laboratório do casal Curie.

Eis ao hoje de ontem a beligerante jornada humana em busca da cura do câncer. 

A quimioterapia inicialmente foi utilizada como complemento após ressecção cirúrgica de tumores. Por conta, passou a se chamar adjuvante. Em seguida houve recombinação e se chegou à neoadjuvância (o prefixo neo significa novo), forma de tratamento que precede a operação exerética do tumor. O rearranjo obteve melhoras promissoras.

Não ficamos por aí...

Enquanto nós cirurgiões estivemos sentados no banco de jardim, contemplando os ganhos da cirurgia minimamente invasiva, a imunoterapia e outros grupos de fármacos começavam a ganhar raízes. Os resultados promissores dos primeiros estudos com os programas Adaura e Pacific, empregando novas drogas, enriqueceram o solo dessa nova oncologia, apesar do alto custo.

Eis que a nova combinação entre imunoterápicos e quimioterápicos ganha outra nova recombinação: o tratamento perioperatório. O novo morfema (modificação de uma palavra para se transformar em outra) chega para representar esse salto clínico.

A trimodalidade (cirurgia, radioterapia e quimioterapia), agora recheada pela imunoterapia, chega para reeditar o tratamento do câncer pulmonar, e traz consigo, além da revitalização linguística, a esperança de Pavel, o personagem. Basta acessar aos recentes artigos Perioperative Pembrolizumab for Early-Stage Non-Small-Cell Lung Cancer dos investigadores Checkmate 671, assim como Perioperative Durvalumab for Resectable Non–Small-Cell Lung Cancer dos investigadores AEGEAN, para comprovar o dito. Aliás, AEGEAN poderia ser homenagem ao mar de Egeu, um apêndice do mar Mediterrâneo localizado entre a Turquia e Grécia, onde nasceu Galeno, um dos idealizadores de nossa profissão.

De volta ao tema, o tratamento perioperatório é iniciado logo após o diagnóstico histológico e mutacional, em pacientes ressecáveis (CNPC) em estádio II ou III. Faz-se quimio e imunoterapia; vem a pausa para tratamento cirúrgico e, após poucas semanas, reinicia-se a imunoterapia, de forma isolada. O resultado foi melhora no intervalo livre de doença e resposta patológica completa. Ou seja, melhora de resultados em longo prazo.

Mas se um banco de jardim parece um artefato completamente dispensável, contudo ele nos ajuda a reorganizar não só o visível, mas também o modo de nos olharmos. À sua maneira, oferece-nos a paisagem para a reconstrução de nosso cotidiano. Imagina, por exemplo, os bancos de jardins da Provence, onde Van Gogh pintou a continuação da natureza, salpicada de azul e amarelo. 

Imagina, por exemplo, aquele banco de jardim, de Pavel, no início do texto, que sentiu queimar sua veia na insônia da história, minuto a minuto, gota a gota. Reviveu-se a marca que hoje não se pode regredir. São ressignificações ganhando suspiros; são palavras compostando-se no jardim da oncologia... e da expectativa da cura.

Razão, facho de luz que seduz a esperança.