sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

A metalinguística pelos jardins da oncologia

 A clever turn of phrase

From your vocabulary
Ingenuine desire
To know a little more

Leo Sidran, na música: The art of conversation

 

- Que espécie de tratamento eu vou receber?

- Injeções... Eu já disse antes.

- Mas... onde? No tumor mesmo?

- Não... via endovenosa.

- E... quantas...?

-Três vezes por semana.

- E uma... operação... seria possível ?

(“Por trás da pergunta estava um medo indisfarçável de se ver estendido numa mesa de operação. Como a maioria dos pacientes, ele [o personagem Pavel Nicolayevich] também preferia receber qualquer tipo de remédio por mais longo que fosse”­).           

     O diálogo acima ocorre no jardim do hospital-cenário em “Pavilhão dos cancerosos”, do escritor russo Alexandre Soljenitze, Nobel de literatura. Revela os primórdios da quimioterapia na esperança de frear o câncer e o caminho para a sala de operações.

O tecido social da obra é o Uzbequistão dos anos 1930 e 40, quando o mundo via nos tumores malignos um único destino: o purgatório. A radioterapia, outra modalidade de esperança, ainda ensaiava os primeiros raios no laboratório do casal Curie.

Eis ao hoje de ontem a beligerante jornada humana em busca da cura do câncer. 

A quimioterapia inicialmente foi utilizada como complemento após ressecção cirúrgica de tumores. Por conta, passou a se chamar adjuvante. Em seguida houve recombinação e se chegou à neoadjuvância (o prefixo neo significa novo), forma de tratamento que precede a operação exerética do tumor. O rearranjo obteve melhoras promissoras.

Não ficamos por aí...

Enquanto nós cirurgiões estivemos sentados no banco de jardim, contemplando os ganhos da cirurgia minimamente invasiva, a imunoterapia e outros grupos de fármacos começavam a ganhar raízes. Os resultados promissores dos primeiros estudos com os programas Adaura e Pacific, empregando novas drogas, enriqueceram o solo dessa nova oncologia, apesar do alto custo.

Eis que a nova combinação entre imunoterápicos e quimioterápicos ganha outra nova recombinação: o tratamento perioperatório. O novo morfema (modificação de uma palavra para se transformar em outra) chega para representar esse salto clínico.

A trimodalidade (cirurgia, radioterapia e quimioterapia), agora recheada pela imunoterapia, chega para reeditar o tratamento do câncer pulmonar, e traz consigo, além da revitalização linguística, a esperança de Pavel, o personagem. Basta acessar aos recentes artigos Perioperative Pembrolizumab for Early-Stage Non-Small-Cell Lung Cancer dos investigadores Checkmate 671, assim como Perioperative Durvalumab for Resectable Non–Small-Cell Lung Cancer dos investigadores AEGEAN, para comprovar o dito. Aliás, AEGEAN poderia ser homenagem ao mar de Egeu, um apêndice do mar Mediterrâneo localizado entre a Turquia e Grécia, onde nasceu Galeno, um dos idealizadores de nossa profissão.

De volta ao tema, o tratamento perioperatório é iniciado logo após o diagnóstico histológico e mutacional, em pacientes ressecáveis (CNPC) em estádio II ou III. Faz-se quimio e imunoterapia; vem a pausa para tratamento cirúrgico e, após poucas semanas, reinicia-se a imunoterapia, de forma isolada. O resultado foi melhora no intervalo livre de doença e resposta patológica completa. Ou seja, melhora de resultados em longo prazo.

Mas se um banco de jardim parece um artefato completamente dispensável, contudo ele nos ajuda a reorganizar não só o visível, mas também o modo de nos olharmos. À sua maneira, oferece-nos a paisagem para a reconstrução de nosso cotidiano. Imagina, por exemplo, os bancos de jardins da Provence, onde Van Gogh pintou a continuação da natureza, salpicada de azul e amarelo. 

Imagina, por exemplo, aquele banco de jardim, de Pavel, no início do texto, que sentiu queimar sua veia na insônia da história, minuto a minuto, gota a gota. Reviveu-se a marca que hoje não se pode regredir. São ressignificações ganhando suspiros; são palavras compostando-se no jardim da oncologia... e da expectativa da cura.

Razão, facho de luz que seduz a esperança.


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