quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Partiu Brasil! Até breve, Braga!!!

  Viver é um rasgar-se e remendar-se"

Guimarães Rosa, em: "Tutameia"


      Um pedaço de mim morou em Portugal por oito anos, emendado entre Universidade do Minho e do Porto. Também tentando empreender. Faltou-nos cacoete. Falo com a voz desse pedaço, em forma de partida.

      No alforge, um pouco do que cultivamos: trouxas de roupas usadas e amontoado de livros (46kg). Muito aprendizado, amigos e algumas incursões científicas.

    Os livros vieram todos; as roupas só as mais úteis. Cerca de sete sacolões de feira foram depositados para doação: tênis, sapatos, roupas casuais e de frio. O que ficou quase não coube no depósito, que fica ao lado de um grande shopping em Braga, cidade onde parte de mim viveu. Não tínhamos carros; apenas uma bicicleta, anunciada por 90 euros.

   Tivemos que fazer uns três carretos para finalizar as doações, pois eram muitas peças. No último encontramos um representante da freguesia de São Vitor, que nos informou o destino: Ucrânia.

    Quem fez o último carreto foi um dos filhos, enquanto estivemos nos despedindo do centro histórico de Braga, em que a igreja da Sé estava fechada e não pudemos fazer nossas últimas orações e agradecimentos. 

  Quando se doa, vale relembrar, normalmente não se sabe qual destino, mas o curioso que, naquele momento da mensagem da última doação, à minha frente (início da avenida da Liberdade, defronte ao chafariz) havia uma bandeira da Ucrânia com o escrito: "fim à guerra". Levou-me à melancolia, ao mesmo tempo fez brotar gotas de solidariedade acerca das doações. 

     Já são 12,3 mil mortes desde o início do conflito, sendo que mais de 14 milhões já abandonaram o país. Um verdadeiro trauma ucraniano, em que mais de 7,1 milhões de pessoas deslocaram-se internamente (sem abrigos), para onde se destinam as doações.

      Por sua vez, em Gaza, o Escritório da ONU estima que 1,9 milhão de pessoas tenham sido deslocadas internamente; representa cerca de 90% da população palestina. Bem menor que a Ucrânia, mas Gaza teve repercussão em valores relativos bem maior que a Ucrânia - longe de comparar perdas.

      Ao voltar e ver as malas prontas, livros encaixotafos e as paredes esqueletizadas, senti o cinto do avião afivelado e o peito apertado. Senti que já estava enraizado a Portugal, em que pese as dissonâncias e a distância de Belém. Foi o início do desapego, e também de uma saudade frajola de ter vivido num país onde os cidadãos e o Estado ainda guardam algum olhar para os mais necessitados, cujas taxas de violência são aceitáveis.

      Esse apego também tive ao partirmos do Acre (infância), Largo de Santa Luzia (graduação) e Rio de Janeiro (formação profissional). A modesta despedida se deu num cantinho saudoso de Braga, em boteco abrasileirado, entre amigos de copo e de trabalho, sem necessariamente nessa ordem.

     Portugal ficará eternamente guardada em nossos alvéolos pulmonares, consoante às visitas ao Instituto Português de Oncologia (Porto), onde o grupo de cirurgia sempre me recebeu com estima e carinho.

     Mas as ruas desse vendaval, entre virtudes e fraquezas, deixou-me ver a vida pulsar todo final de dia, ao caminhar entre o barroquismo das cidades e praças modernas. Já ao anoitecer, a imaginação no voo de volta iluminava as gotas do amanhã que já comungam com esse passado, simulando hóstia, caridades, divindades e experienciando a passagem por outras terras.







segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Os ventos do norte não movem moinhos? O rejuvenescimento dos transplantes de pulmão no Ceará.

 Os grandes trabalhos nascem pequenos, na surdina, em silêncio e crescem aos poucos.

Fernanda Torres, atriz.

A fotografia é de causar inveja à Monalisa: jovem de 24 anos exibe-se no CTI após retirada do próprio tubo traqueal, auxiliada por médicos e fisoterapeutas. A imagem foi postada em rede social fechada e suscitou admiração dos cirurgiões. Não se consegue definir se era rosto de espanto, sorriso, choro, ou mesmo dor, pois a jovem havia sido submetida a duplo transplante de pulmão (hospital de Messejana, Fortaleza, CE). Em 72 horas estava posando para câmera. 

Sabe-se que no Brasil existem vários núcleos transplantadores de órgãos, porém o pulmonar é menor, por conta de constantes desafios ligados à rejeição e infecção; também pela política pública de saúde, falta de doadores e de mão de obra treinada.  Assim, quando nasce um novo transplante pulmonar no lado norte de nosso mapa, comemoramos como se dom Quixote ultrajasse seus moinhos de vento, ou como se fosse láurea para uma atriz, representando nossa arte para o mundo. 

Em seguida, um comentário especial: “Parabéns ao Israel [Medeiros], atual coordenador do programa. Sinto-me muito feliz com o sucesso e a continuidade do programa, que aos trancos e barrancos conseguimos mantê-lo ativo, embora com altos e baixos desde 2011. Temos muitos pacientes transplantados e plenamente ativos para contar a história”, grifou Antero Gomes Neto, idealizador do programa, que  segue em linha reta no Messejana e ainda ativo no campo cirúrgico e nos congressos 

Na sequência, Medeiros, o novo coordenador, rebate: “A emoção de extubação e da possibilidade de respirar com novos pulmões. Lembrando que nosso centro está ativo. Podem divulgar para os pneumologistas se quiserem encaminhar alguém...”. A sensação do final da frase mais pareceu desabafo, para garantir que o legado também segue em linha reta.

A menção “os ventos do norte não movem moinhos” pode ser interpretada como uma metáfora para esforços inúteis ou obstáculos intransponíveis. Alencarinos, tal como norte-nordestinos, sabem quão difícil é trair os ritos para implantar programas de alta complexidade. 

No caso de Fortaleza, o novo coordenador Israel Medeiros formou-se pela USP. Andou por Toronto e Viena em busca de mais tutano. Confessou também grande aprendizado com Antero Gomes Neto, o criador, que teve inspiração em J.J Camargo, nosso grão-pioneiro.

Em seguida alguém indaga a indicação: “fibrose pulmonar [pneumonite por hipersensibilidade (PH)... provavelmente]”, responde. Mas o “provavelmente” não tem a doçura da rapadura. Sabe-se que parte das PH podem evoluir para fibrose, porém é mais prevalente em faixa etária mais alta, de ambos os sexos. No caso acima, a idade chama atenção de pneumologistas para um novo agente nocivo aos pulmões, e que pode confundir o diagnóstico e também levar à fibrose: EVALI (do inglês: E-cigarette-/vape-associated lung injury), ou seja, doença pulmonar causado pelos novos cigarros eletrônicos (nicotina, aromatizantes, aditivos e canabidiol em alguns). 

EVALI, descrita pela primeira vez na literatura em 2019, apresenta-se inicialmente com tosse e falta de ar. Pode resultar em inflamação e fibrose. É frequentemente visualizada na fase aguda como opacidades em vidro fosco, a lembrar o pulmão da COVID-19. Na fase crônica se comporta como fibrose cicatricial, de modo a deixar o pulmão petrificado. Já há diversos relatos de pacientes com quadros fulminantes e mortais por EVALI. Alguns jovens já até necessitaram de transplante pulmonar duplo. E esse é o apelo dos pneumologista.

Diante dessa mudança e da dificuldade em conter o uso de VAPES, é provável que tenhamos que criar mais centros transplantadores de pulmão, como está acontecendo nesse momento em Belo Horizonte (UFMG), pois não há polícia que contenha o avanço dessa nova caricatura estilizada da indústria do cigarro. Foi o que aconteceu com a criação dos centros de trauma no Brasil, ante à incapacidade de se conter a violência urbana.

Oxalá o deus Tezcatlipoca escute os pneumologistas. 

Glosário: Tezcatlipoca é um dos três grandes deuses da mitologia asteca: é o deus do céu noturno, da lua e das estrelas; senhor do fogo e da morte.


Roger Normando - Professor de Clínica Cirúrgica II, Disciplina de Cirurgia Torácica, Universidade Federal do Pará.