segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Os ventos do norte não movem moinhos? O rejuvenescimento dos transplantes de pulmão no Ceará.

 Os grandes trabalhos nascem pequenos, na surdina, em silêncio e crescem aos poucos.

Fernanda Torres, atriz.

A fotografia é de causar inveja à Monalisa: jovem de 24 anos exibe-se no CTI após retirada do próprio tubo traqueal, auxiliada por médicos e fisoterapeutas. A imagem foi postada em rede social fechada e suscitou admiração dos cirurgiões. Não se consegue definir se era rosto de espanto, sorriso, choro, ou mesmo dor, pois a jovem havia sido submetida a duplo transplante de pulmão (hospital de Messejana, Fortaleza, CE). Em 72 horas estava posando para câmera. 

Sabe-se que no Brasil existem vários núcleos transplantadores de órgãos, porém o pulmonar é menor, por conta de constantes desafios ligados à rejeição e infecção; também pela política pública de saúde, falta de doadores e de mão de obra treinada.  Assim, quando nasce um novo transplante pulmonar no lado norte de nosso mapa, comemoramos como se dom Quixote ultrajasse seus moinhos de vento, ou como se fosse láurea para uma atriz, representando nossa arte para o mundo. 

Em seguida, um comentário especial: “Parabéns ao Israel [Medeiros], atual coordenador do programa. Sinto-me muito feliz com o sucesso e a continuidade do programa, que aos trancos e barrancos conseguimos mantê-lo ativo, embora com altos e baixos desde 2011. Temos muitos pacientes transplantados e plenamente ativos para contar a história”, grifou Antero Gomes Neto, idealizador do programa, que  segue em linha reta no Messejana e ainda ativo no campo cirúrgico e nos congressos 

Na sequência, Medeiros, o novo coordenador, rebate: “A emoção de extubação e da possibilidade de respirar com novos pulmões. Lembrando que nosso centro está ativo. Podem divulgar para os pneumologistas se quiserem encaminhar alguém...”. A sensação do final da frase mais pareceu desabafo, para garantir que o legado também segue em linha reta.

A menção “os ventos do norte não movem moinhos” pode ser interpretada como uma metáfora para esforços inúteis ou obstáculos intransponíveis. Alencarinos, tal como norte-nordestinos, sabem quão difícil é trair os ritos para implantar programas de alta complexidade. 

No caso de Fortaleza, o novo coordenador Israel Medeiros formou-se pela USP. Andou por Toronto e Viena em busca de mais tutano. Confessou também grande aprendizado com Antero Gomes Neto, o criador, que teve inspiração em J.J Camargo, nosso grão-pioneiro.

Em seguida alguém indaga a indicação: “fibrose pulmonar [pneumonite por hipersensibilidade (PH)... provavelmente]”, responde. Mas o “provavelmente” não tem a doçura da rapadura. Sabe-se que parte das PH podem evoluir para fibrose, porém é mais prevalente em faixa etária mais alta, de ambos os sexos. No caso acima, a idade chama atenção de pneumologistas para um novo agente nocivo aos pulmões, e que pode confundir o diagnóstico e também levar à fibrose: EVALI (do inglês: E-cigarette-/vape-associated lung injury), ou seja, doença pulmonar causado pelos novos cigarros eletrônicos (nicotina, aromatizantes, aditivos e canabidiol em alguns). 

EVALI, descrita pela primeira vez na literatura em 2019, apresenta-se inicialmente com tosse e falta de ar. Pode resultar em inflamação e fibrose. É frequentemente visualizada na fase aguda como opacidades em vidro fosco, a lembrar o pulmão da COVID-19. Na fase crônica se comporta como fibrose cicatricial, de modo a deixar o pulmão petrificado. Já há diversos relatos de pacientes com quadros fulminantes e mortais por EVALI. Alguns jovens já até necessitaram de transplante pulmonar duplo. E esse é o apelo dos pneumologista.

Diante dessa mudança e da dificuldade em conter o uso de VAPES, é provável que tenhamos que criar mais centros transplantadores de pulmão, como está acontecendo nesse momento em Belo Horizonte (UFMG), pois não há polícia que contenha o avanço dessa nova caricatura estilizada da indústria do cigarro. Foi o que aconteceu com a criação dos centros de trauma no Brasil, ante à incapacidade de se conter a violência urbana.

Oxalá o deus Tezcatlipoca escute os pneumologistas. 

Glosário: Tezcatlipoca é um dos três grandes deuses da mitologia asteca: é o deus do céu noturno, da lua e das estrelas; senhor do fogo e da morte.


Roger Normando - Professor de Clínica Cirúrgica II, Disciplina de Cirurgia Torácica, Universidade Federal do Pará.




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