A revolução científica do século XX remodelou completamente todas as áreas dos estudos biomédicos, sendo a pesquisa do câncer apenas uma cujos resultados chegam em gotículas milagrosas.
Mas o começo de tudo se deu no século anterior (1858) com Rudolf Virchow, filho da Pomerânia, atual Polônia, com a frase: Omnis cellula e cellula (latim). A frase retrata que todos os tecidos orgânicos são compostos por células e produtos celulares que surgem a partir da divisão celular de uma célula preexistente. Uma descoberta seminal. Uma espécie de Santo Graal da biologia.
Levando em
consideração tal questão, pode-se deduzir que todas as células que formam um
organismo complexo são membros de linhagens celulares provenientes do único
óvulo fertilizado, capaz de originar todas as células do corpo, por meio de repetidos ciclos de divisão e crescimento celular, até se
diferenciarem em cabelo, dedão do pé, pulmão, etc. Esse gatilho faz-nos
apaixonar pelas ciências da vida.
A partir dessa revolução dão-se avanços na genética e hereditariedade: de
como as células se multiplicam e dividem; de como elas se associam para formar
tecidos e de como os tecidos se desenvolvem e se capilarizam a partir dos gatilhos (DNA, genes) específicos. Mas essa produção seriada e linear, em determinado
momento falha, incorre no que os biólogos chamam de erro, um deles conhecido como mutação. É daí que surgem doenças. Cigarro e excesso de açúcar (obesidade)
são exemplos que destrambelham o trilho dessa linearidade e geram células cancerosas.
Mas
o erro tem mais de uma face e, nos apontamentos de Gyorgy Lulaks, o erro não passa de um peculiaridade, particularidade. Ou seja, se na biologia de Virchow o tal erro é entendido como gerador
de doença, na arte é o motor da evolução, da criatividade, da admiração. Para Mia Couto biólogo, se o erro não ocorresse, a vida não vingaria, e não passaríamos de uma
ameba de esgoto. Como esse erro ocorreu há dois bilhões de anos tornamo-nos
multicelulares organizados, depois diferenciados, até chegarmos a Triops cancriformis (camarão girino), que data de 200 milhões de anos atrás. Interessante é que este ser vivo, considerado
o mais antigo ainda existente na terra, tem no seu nome científico a raiz etimológica do câncer
(cancriformis).
Por sua vez, o Mia Couto escritor e poeta vai além: No fundo, o erro é aquilo que nos surpreende, que não está no domínio do previsto, não está no domínio do lógico. É o que os médicos chamam de doença, má formação, mas que os artista veem de outra forma. Para o poeta Manoel de Barros: "errar é bonito".
Se olharmos para as extremidades da Abaporu, que em tupi-guarani significa homem que come gente (antropofagia), percebe-se ali certo exagero no tamanho dos pés. Do ponto de vista biológico existe ali erro biológico (acromegalia), pois ninguém tem uma prancha nos pés, nem sequer os Hobbit. Porém, para a arte, esse gigantismo nas extremidades deu à Tarsila do Amaral destaque com influência surrealista, a ponto de revolucionar as artes no Brasil. Ou seja, a arte elaborada na base do erro torna-se bela por desconstruir a linearidade da biologia virchowiana.
Se o erro faz
parte da estética da arte, por sua vez a ciência veste-se de branco e embebe-se
de sua dialética para abjurá-lo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário