Foi pelo caminho das águas, com os ribeirinhos, que resolvi passar o natal com a família. Embarquei na expedição Tucumanduba, que há mais de 30 anos é liderada por David, meu irmão dentista. Já fui umas
tantas vezes. Só não vou mais por conta de um projeto social.
Fui bastante animado, afinal fazia tempo que não
comemorava o natal no seio da floresta. Fui também para rever tio
Bena e d. Marivalda, velhos conhecidos e nativos que nos recebem em sua casa simples, do trapiche à cozinha.
Tio Bena, com pouco mais de 80 anos, é a quarta geração da família Góes. Vieram de Portugal no final do século 19 para as ilhas ao redor de Abaetetuba, até fincar a bandeira lusa. Existe, por lá, a lápide de João Góes, o primeiro imigrante. Tio Bena ainda gaba-se que se curou de duas ziquiziras com a ponta do bisturi: tumor de próstata e câncer de parede torácica, mas ficou proibido pelos filhos - não pelos médicos - de trepar em açaizeiro de peconha. Por ele, ainda daria para escalar um gito. Gaba-se mais ainda de ter toda essa virilidade, por conta da alimentação saudável: açaí do fundo do quintal (rico em antocianinas, pigmento flavanoide anti-envelhecimento) e peixe Mapará apanhado no rio defronte (rico em proteínas, pouca gordura saturada e sem carboidratos).
Escorado no casarão de mais de 100 anos, tento me
achar no Google Maps. Nada, nada. Não chega sinal por lá. Ali o rio é rua e a mata fechada é um
paredão verde que tira coragem de qualquer um de se embrenhar e bater perna. Tio Bena
diz que não tem onça, no máximo tatu e macaco prego. Meu receio é cobra, mas
ele diz que não. Não se discute com sábios. Vez por outra, se vê boto.
Dia antes dos presentes programamos um passeio de
barco para tomar banho na baía do Capim (junção do rio Tocantins com o Amazonas
– rio Pará). Estávamos incendiados. Fomos na
maré baixa, titiando a floresta até varar no destino. No isopor o indispensável: cevada no gelo para brindar o desfolhar
da natureza e o níver do menino Jesus
ribeirinho, segundo o poeta Paes Loureiro - que nasceu por aqueles bandas.
No passeio só gente tarimbada. Além do Nailson,
filho do tio Bena, havia um outro Davi - sem o “D” ao final. Nailson é contador
de causos do tio Caetano, um velho filósofo que nunca leu Kiekeergad, mas adorava
relacionar o existencialismo sartriano com a pescaria predatória. Juntando
Elmar soma-se a vasta experiência de contar
causos. Ou seja, havia muita vontade e uma leva de
aventureiros apaixonados pelo natal dalí, onde não há luxo e se proíbe
lixo.
Já era boca da noite quando chegamos do passeio. Cansados,
atamos as baladeiras. Dorme-se cedo por aqueles barrancos. Éramos dez num
espaço exíguo. Pois bem... No meio do sono me acordaram com uma orquestra de
trombones que variava entre macaco guariba urrando e roncos retumbantes da cambada.
Não tive como distinguir. Teve um que deu pontapé na rede do vizinho, pensando
ser um macaco sequestrador.
Na manhã seguinte já era Natal. A nossa valença foi a junção de expertises do David e
do Nailson – o contador de causos. Deu tudo certo. Pegamos o rio e fomos ancorando
nas casas com a arquitetura típica dos ribeirinhos. O “Hohoho” do João Paulo,
nosso homem de vermelho, alertava os moradores para a chegada. No lugar
do trenó, um barquinho popopô sem cobertura puxando os presentes. O sol batia
no toutiço. Não havia como disfarçar o calor. Foram quase duas horas rio-acima-rio-abaixo,
cruzando com canoas e rabetas, e acenando para sumanos e suprimos.
As crianças presenteadas eram um sorriso só.
Foram mais de 50, a começar pelo Danilo e findar na Micaela. Os
brinquedos o David comprara. As roupas, doações.
Não pode faltar brinquedo e escovas de dente. Isso é triunfar no espírito natalino liderado por um dentista. O sorriso indisfarçável no rosto de cada criança é lágrima no coração da gente, que escoa e se dilui pela vastidão daquele mundo-água. Aquela visita que já ocorre há mais de 30 anos, mais parece cura para nossas bonanças e um nocaute em nossa tentativa de ser o que jamais fomos.
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