domingo, 14 de outubro de 2007
Nem toda unanimidade é burra
Tive a felicidade (incompleta, pois foi única) de ter visto Paulo Autran no teatro, sua arte preferida. Foi no espetáculo "O Quadrante", lá pelos idos de 1995 ou 1996, não lembro bem.
A peça era um show, como o próprio ator a definia: Autran, sozinho no palco, declamava poemas, recitava contos, encenava trechos de peças. Chamava aquele trabalho de show, e não de monólogo, porque não era uma peça única. Tratava-se, na realidade, de uma coletânea.
Porém, não havia palavra melhor para definir o que era o espetáculo: um show. Aliás, um SHOW - assim mesmo, em caixa alta. Ou ainda, um espetáculo, na mais, digamos, violenta e vigorosa acepção da palavra.
Em particular, três coisas da peça permanecem inedeléveis na minha memória.
A primeira era a dicção de Paulo Autran. Havia coisas que ele sussurrava no palco; sussurrava mesmo, sem tirar nem pôr, como quem conta um segredo de pé de ouvido. Todos escutávamos, da primeira fila da platéia ao último espectador do paraíso do teatro. Na ocasião, eu me encontrava em um camarote de 2a classe, dois andares acima do palco, e ouvia Autran falar como se estivesse ao meu lado. Friso o que digo porque pode parecer o exagero das notas exequiais; mas nada é exagero, quando se fala de Autran. Era algo tão impressionante que, na saída do teatro, todos os presentes comentavam a mesma coisa - não importa onde estivessem, ouviram-no fantasticamente. Sem esforço, sem a fala gritada que muitas vezes marca atores iniciantes, sem esganiçamentos, Paulo Autran projetava de modo puro, articulado e maravilhoso sua voz em todos os recônditos do lugar.
A segunda era sua expressão corporal. Em determinado trecho da peça, Autran declamava o conto "Meu Tio o Iauaretê", de Guimarães Rosa, em que, de modo muito resumido, um homem narra uma história e vai, aos poucos, se metamorfoseando em onça no seu decorrer. Pois bem: ao final do conto, tínhamos uma onça no palco. Aos 75 anos de idade, Autran dominava seus movimentos de modo incrível para um reles mortal: imitava à perfeição os modos de um bicho - lambia a pata, coçava-se, movia-se como uma onça.
A terceira era seu carisma. Era demais para a minha parca compreensão entender como um único homem, já ancião, sem nenhum cenário ou figurino, somente com uma luz sobre si mesmo, pudesse modificar situações, fazer-nos imaginar lugares, coadjuvantes inexistentes e outros aspectos muitas vezes tão decisivos em montagens teatrais, sem o auxílio de qualquer um destes recursos. Minha ficha caiu quando ele encenou o trecho do assassinato de Júlio César, na peça homônima de Shakespeare. No palco não estava somente o protagonista; estavam também seus algozes, Brutus e os outros senadores romanos. Ele nos transportou àquele momento sozinho, sem auxílio de música, cenografia, iluminação ou outros atores. Como li certa vez, a respeito de seu desempenho, ele, sozinho, preenchia todo o palco.
Um "monstro" desta magnitude desafia célebres afirmações: Paulo Autran desmentiu Nelson Rodrigues.
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4 comentários:
Que falta que Paulo já nos faz.
O Cirque de Soleil estará aqui em Brasília nos próximos dias.
Fico a imaginar Paulo Autran atuando no espetáculo. Naturalmente apresentando-se como o sinônimo da Alegria. Título do novo espetáculo da Trupe.
Ah! Como queria ver isso pois, os figurantes verei. Mas, de certo, não estarão associados com a áurea do gênio do Teatro Brasileiro.
FRJ você realmente me ENCANTA, assim mesmo, em caixa alta... rsrs...com todos os seus comentários, posts, poesias, músicas...você é 10, não...consertando..11...rsrs...por enquanto...rsrs
Beijinhos.
Fique em paz.
:)
Dr. Francisco,
Paulo Autran será sempre um ícone do teatro brasileiro, ele era um artista completo.
Eu, pessoalmente, via nele, e pra mim isso é sempre o mais importante, um ser humano formidável.
antonio carlos de andrade monteiro
Val, seria era realmente um espetáculo do melhor com o "mais melhor" ainda. Acho que Autran gostaria da experiência.
Cris, tua gentileza é que é encantadora. Obrigado sempre pela força e presença por aqui.
ACM, meu rapaz, tens toda razão. Paulo Autran realmente era, além do ator maravilhoso, um ser humano sensacional.
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