quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Servidão Humana

William Somerset Maugham foi, dizem, o maior escritor de língua inglesa do século XX. Morreu milionário, em sua casa na Côte d’Azur (hoje, um luxuoso hotel à beira-mar), com inúmeros de seus livros transformados em filme.

O mais conhecido dos romances de Somerset Maugham é, certamente, O Fio da Navalha. A obra foi levada ao cinema em duas ocasiões: em 1946, no filme protagonizado por Tyrone Power, e, mais recentemente, em 1984, em película estrelada por Bill Murray.

O melhor livro de Maugham, porém, é Servidão Humana (Of Human Bondage, no original em inglês). A história de Philip Carey, da infância, quando perde os pais e vai morar com seu tio pastor e a mulher deste, no interior da Inglaterra, até sua estabilidade em Londres, é arrebatadora. O leitor acompanha o protagonista em suas descobertas existenciais, vividas não só na capital inglesa como em Heidelberg e Paris, e com ele sofre as agruras de ter-se apaixonado por um ser baixo e vil, a garçonete Mildred Rogers.

Philip desce às mais baixas humilhações por causa de sua paixão desenfreada, alegrando-se com as migalhas de atenção que Mildred lhe concede. Conhece-a em seu trabalho, em um restaurante onde vai, pela primeira vez, com um amigo da faculdade de Medicina. Aproxima-se, primeiramente, porque ela o trata com um desdém que ele julga poder subjugar. Quando percebe, está perdidamente apaixonado e assim segue, quase até o final do livro, em queda livre. Faz de tudo por ela, apesar da consciência de que se trata de um ser vulgar, egoísta, fútil e, ainda por cima, feia.

Servidão Humana foi levado às telas por três vezes. Na primeira versão, Mildred é representada por Bette Davis, ainda jovem. Nunca vi o filme, mas quem assistiu, por exemplo, A Malvada (All About Eve), com a atriz já na maturidade, e leu o livro de Maugham, não pode deixar de reconhecer que Bette é, realmente, a cara de Mildred – e não se trata somente de physique du rôle, mas do olhar, dos esgares, da voz. Se Mildred fosse de carne e osso, seria como Bette Davis.

Uma segunda versão foi filmada anos depois, mas desconheço quem a fez. Na terceira versão, de 1964, o papel de Mildred foi feito por Kim Novak. É engraçado, mas não consigo imaginar Kim, que foi uma das atrizes mais bonitas do cinema, no papel da desprezível Mildred.

Servidão é um livro que todos os que o leram recomendam; sou apenas mais um. Somerset Maugham, infelizmente, é um autor esquecido no Brasil, e que merece imediato resgate.

15 comentários:

Anônimo disse...

Meu caro Francisco:
O azar do Somerset foi pegar uma turma da pesada, seus contemporâneos, gente como James Joyce, Kafka (que só viria a ser reconhecido, post-mortem, depois da década de 1930), Marcel Proust, Thomas Mann, Musil, Broch, e por aí segue, sem esquecer Virginia Woolf e outros menos votados da turma de Bloomsbury.
Ou seja, Maugham ficou ali pelo segundo escalão, mas um autor bastante legível. Tenho exatamente aqui ao meu lado suas Confissões, numa nova edição - que a Globo o vem reeditando.
Em tempo: um dos meus autores preferidos, Anthony Burgess, teria, dizem as boas línguas, usado Somerset Maugham como inspiração para compor o protagonista do romance Poderes Terrenos, um ótimo livro, infelizmente um tanto quanto prejudicado pela tradução brasileira. Este protagonista, um famoso escritor de mais de 80 anos, começa o livro, um tijolaço, amanhecendo ao lado de seu bofe, enquanto serviçais anunciam a chegada do bispo na mansão, alguma coisa assim, que cito de memória. Ou seja, o tal escritor era, como diria o Paulo Silvino, uma bichona. Dizem as boníssimas línguas que daí deriva a inspiração do grande Burgess, autor, a propósito de Laranja Mecânica. Abraço, Elias

morenocris disse...

Boa tarde, FRJ.

Legal a indicação. Só se resgata o que se perde, o que não é o caso da leitura. Temos autores maravilhosos em nossas bibliografias. Machado de Assis, por exemplo. Mas acho que valeu o registro.

Quanto ao conteúdo temático, Lacan diria que é um estado permanente de autopunição. Ele não foi tão bem sucedido assim, como caracteriza o personagem central. Dinheiro não é tudo. Estabilidade financeira idem. Quanto ao objeto de seu desejo, gente desse tipo existe em qualquer parte de qualquer país. Acho que o destaque para a beleza é que foi de uma futilidade cruel. Quem busca o externo é porque carece de um interno de qualidade. Realmente, é aqui que está o "fio da navalha" !

Gosto de suas seleções. É de muito bom gosto e sempre nos faz refletir. Você é imprenscindível nos blogs. O seu conhecimento sobre artes, músicas, poesias, politicas, é como diz o Lúcio Flávio Pinto - "Biscoito fino para o meu paladar".

Parabéns! Serei sempre sua admiradora.

Abraços.

Francisco Rocha Junior disse...

Elias,
Na realidade me expressei mal: o que dizem de Somerset Maugham é que ele foi o maior escritor inglês (e não de língua inglesa) do século XX. Realmente, concorrer com James Joyce não dá; mas este era irlandês, o que talvez mantenha o epíteto de Maugham. Os demais que tu citaste, apesar de concordarmos serem maiores que ele, eram de outras nacionalidades.
Obviamente, isto não afasta o que disseste no mérito, mas eu ouso discordar. Acho Somerset Maugham um dos melhores dos mais recentes, e por isso acho inexplicável terem-no legado ao segundo escalão dos escritores modernos. Merece muitos mais encômios, ao meu ver, que por exemplo J. D. Salinger, de "O Apanhador no Campo de Centeio", para mim um grande engodo americano (por favor, sem violência se discordar...).
Não li "Confissões", mas vou procurar nas livrarias; do meu lado, além das obras mencionadas no post, sugiro também a leitura de "Férias de Natal" (também reeditado pela Globo) e os contos, como "Chuva" ("Rain", no original).
A propósito, Anthony Burgess é uma ótima lembrança. Mas ele não foi o único a tomar Somerset Maugham como inspiração para um personagem da literatura: a própria história de "Servidão Humana" é calcada da vida do autor. Só que ele substituiu sua homossexualidade por um aleijão (Lacan eu não sei, mas Freud provavelmente explicaria esta comparação de Maugham).
Abraços, obrigado por prestigiar o blog e volte sempre.

Francisco Rocha Junior disse...

Olá Cris,
Este post veio a propósito de uma velha vontade. Desde que li o livro, sempre quis escrever a seu respeito uma pequena resenha. No mini-recreio desta manhã, resolvi concretizá-la. Machado é realmente grandioso, mas quem o esquece? Impossível, não é? Por isso dei esta "trela" para o Somerset.
Sobre o personagem, não julgue mal Philip. Ele é de uma sensibilidade, inteligência e vivacidade de espírito raros. Por isso, e ciente destes atributos, não consegue entender como pôde se apaixonar por Mildred, que se revela rasteira em todas as suas aparições. Nem o mais primal dos sentimentos - a atração física desencadeada pelo belo - consegue fazê-lo entender sua paixão pela garçonete, já que além de tudo ela não é atraente. É este o sentido de incluir tal adjetivo no rol de características da personagem. Friso, inclusive, que esta é uma constatação do próprio Philip, em determinado trecho do romance.
Obrigado, mais uma vez, pela sua gentileza e generosidade.
Beijão.

Francisco Rocha Junior disse...

Ah, Cris, só para registro: em determinado momento do livro, Philip vai à miséria por causa de Mildred. Menciono para não levar ao engano de imaginar que é uma simples história do rico que se apaixona por uma mulher pobre.
Mais não conto, se não acaba a graça. :)
Bjs.

Anônimo disse...

Francisco, assim que eu conseguir retornar à superfície para renovar o fôlego, volto ao assunto. Aquele abraço.

Francisco Rocha Junior disse...

Elias, a casa é tua. Tua presença engrandece o blog. Abraço.

morenocris disse...

FRJ, "velha vontade" é ótimo!

Quem fez "julgamento"? Autopunição é isso, ir ao extremo!

Abraços.

Lauande iria vibrar com esse mini-recreio!

Unknown disse...

Francisco Rocha Jr. em post a la Oliver. Delicioso post, nobre,
mesmo para um não leitor de Maugham, ainda.
Abs aos Flanares.

(cadê a Kat????...rs)

Francisco Rocha Junior disse...

Juvêncio, nada a comparar... Só resolvi me meter no "suplemento cultural" do Flanar, do qual o Oliver é titular absoluto.
Sua presença por aqui engrandece o blog e merece nosso festejo.
Abs.

Carlos Barretto  disse...

Kat alega sempre passar o dia todo na frente do computador, Juca.
O mesmíssimo argumento de And, que jogou a toalha sem nem sequer entrar no ringue.
Definitivamente, blogues exigem uma certa vontade e dedicação.
Vou aplicar-lhe uma leve pressão.
Abs

Unknown disse...

Puxa, Flanar,não faça isso comigo...rs
Abs

Carlos Barretto  disse...

Mas não é em vc, Juca.
É na Kat!
Ou será que vc se incomoda de eu pressioná-la um pouquinho só?
Rs....

Anônimo disse...

Eu tenho mania de associações. Sempre que penso em Servidão Humana associo-o ao Judas, o Obscuro, do Thomas Hardy. Ambos protagonistas foram deixados órfãos ainda criança e foram criados por parentes próximos. Judas é bom e puro. Philip é fraco e consciente. O aleijão de Philip é uma limitação social. A condição social de Judas é uma limitação para o acesso à universidade. Judas é passível demais. Philip é tolerante demais. Ambos amam com devoção e por aí seguem tantas outras circunstâncias que me parecem familiares. Mas o personagem de Maugham, em minha opinião, é mais facilmente digerido como real. As observações que o personagem divide com o leitor em determinadas ocasiões são de uma perspicácia que poucas vezes tive oportunidade de compartilhar.
Servidão Humana é um dos meus romances de formação. É o livro que possui passagens marcadas a lápis, que idéias assimilei como verdades e cujos personagens eu tenho vez por outra esbarrado por aí, vida afora.
Parabéns, amor meu, pela escolha da resenha.
Adorei também o texto sobre o Paulo Autran.

Francisco Rocha Junior disse...

Teulynha, não li "Judas, o Obscuro", por isso não posso fazer a comparação. Só te ouvi falar dele, e teu comentário é coerente com o que me disseste ao final da leitura.
Sobre Philip, eu o comparo um pouco com o Ricardo de "Travessuras da Menina Má", do Vargas Llosa, por motivos que antes já discutimos: a vida de ambos os protagonistas é regulada, em boa parte, pela paixão imbatível por mulheres que não lhes devolvem o sentimento na mesma proporção - ao menos nas mesmas atitudes - e que, ao contrário, aparecem e desaparecem de suas vidas. Nos encontros curtos, quase nunca há tranqülidade ou, se há, é ela sempre interrompida brusca e violentamente. Philip, ao final, se cura e segue sua vida; no caso de Ricardito, quem "se cura" é a Menina Má.
Adorei tua passagem por aqui. Demorou, mas veio... Espero que venhas sempre. Te amo.