sábado, 12 de janeiro de 2008
Belém, 392 anos depois
A Santa Maria de Belém chegava-se pelo rio. De onde quer que se viesse chegava-se pelo rio. Mesmo quando a invenção de voar chegou por lá, no rio ainda é que águias e condores pousavam, no rio. O rio era um rio sem convulsões, dava baques fracos na amurada do cais, na Escadinha, no Galpão Mosqueiro-e-Soure, no Porto do Sal, na Estação Hidroviária da Panair. Os 'bacuraus' da Panair deslizavam na pele do rio. E quando de noite se ouvia o distante ronquinho, falavam: "É o 'bacurau' que vem chegando." Se havia luar, os de sono escasso seguiam o risco de luz sobre a Cidade Velha, sobre a Caixa d'Água, sobre a Port of Pará, antes de inclinar-se para descer. Ninguém se espantava imaginando que fosse cometa ou assombração. "É a Pana-ir!" De começo era Pana-ir, poucos diziam Panair.
Assim começa o romance Rio de Raivas, do paraense Haroldo Maranhão (Livraria Francisco Alves Editora, RJ, 1987), que retrata a refrega política que marcou o pós-guerra paraoara ao opor o ex-governador Magalhães Barata (Cagarraios Palácio, no livro) ao jornalista Paulo Maranhão (Palma Cavalão), avô de Haroldo e dono da Folha do Norte, então o maior jornal do Estado.
No parágrafo inicial da obra, há marcas de uma Belém que não existe mais e de outra que subsiste.
A Belém da memória é a física: a Panair fechou por ordem dos governos militares; os bacuraus, hidroaviões da empresa - catalinas, creio eu -, não existem mais; a Escadinha só funciona no Círio Fluvial para a chegada da imagem peregrina de Nossa Senhora; o Porto do Sal está abandonado; a Caixa d'Água da Palmeira foi desmontada.
A Belém que ainda existe é a terra onde o provincianismo mundano, enxerido e fofoqueiro continua a dar as cartas (terra de muros baixos, diriam alguns), na qual as novidades do mundo só chegam muito depois e o misticismo frutifica, e onde uma elite orgulhosa de si mesma, mas com poucas razões para sê-lo, decide o futuro da terra baseado em vínculos pessoais.
Tomara um dia - um dia, pelo jeito ainda distante - Belém seja aquela que as pessoas de bem que nela moram gostariam que fosse: a cidade lírica, do inesquecível Largo da Sé, em que as avenidas se chamavam Estradas, e que encantou Manuel Bandeira.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
6 comentários:
Belíssimo texto. Evoca o capítulo mais lírico de Rio de Raivas, obra do nosso saudoso Haroldo Maranhão.
Belo texto, Chico!
Os personagens mudam mas o enredo desta nossa novela parauara continua sendo o mesmo. Que pena.
SDC
Obrigado, Oliver. Bonito mesmo é o texto do Haroldo Maranhão.
Abs.
Obrigado, das 17:50. Volte sempre.
Amore..
Que texto lindoooo, só vi hoje!!!
Tua fã,
Teuly
Assim tu me deixas sem graça... beijos. Te amo.
Postar um comentário