De um modo geral, não se compreendia que uma vida que tanto viveu outras vidas, assimilando-as através de análises sutilíssimas, para no-las transfigurar e ampliar, aformoseadas em sínteses radiosas - que uma vida de tal porte desaparecesse no meio de tamanha indiferença, num círculo limitadíssimo de corações amigos. Um escritor da estatura de Machado de Assis só devera extinguir-se dentro de uma grande e nobilitadora comoção nacional.
Era pelo menos desanimador tanto descaso - a cidade inteira, sem a vibração de um abalo, derivando impertubavelmente na normalidade sua existência complexa, quando faltavam poucos minutos para que se cerrassem quarenta anos de literatura gloriosa...
Neste momento, precisamente ao enunciar-se este juízo desalentado, ouviram-se umas tímidas pancadas na porta principal da entrada.
Abriram-na. Apareceu um desconhecido: um adolescente , de 16 a 18 anos no máximo. Peguntaram-lhe o nome. Declarou ser desnecessário dizê-lo: ninguém ali o conhecia ; não conhecia, por sua vez, ninguém; não conhecia o próprio dono da casa, a não ser pela leitura de seus livros, que o encantavam. Por isto ao ler nos jornais da tarde que o escritor se achava em estado gravíssimo tivera o pensamento de visitá-lo. Relutara contra essa idéia, não tendo quem o apresentasse: mas não lográ-la vencê-la. Que o desculpassem, portanto. Se não lhe era dado ver o enfermo, dessem-lhe ao menos notícias certas do seu estado.
E o ânimo juvenil - vindo da noite - foi conduzido ao quarto do doente.
Chegou. Não disse uma palavra. Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre; beijou-a num belo gesto de carinho filial. Aconchegou-o depois por algum tempo ao peito. E sem dizer palavra, saiu.
À porta José Veríssimo perguntou-lhe o nome. Disse-lho.
Mas deve ficar anônimo. Qualquer que seja o destino dessa criança, ela nunca mais subirá tanto na vida. Naquele momento o seu coração bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo - no meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis - aquele menino foi o maior homem de sua Terra.
Ele saiu - e houve na sala há pouco invadida de desalentos uma transfiguração.
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É Euclides da Cunha quem narra os últimos instantes de Machado de Assis, em 29 de setembro de 1908. Em narrativa apaixonada e plena de beleza vernacular, o autor de Os Sertões equivoca-se num ponto: o rapazola anônimo foi mais além na vida. Adulto, tornou-se Mário Pedrosa, líder comunista considerado entre os nossos mais importantes críticos literários.
Era pelo menos desanimador tanto descaso - a cidade inteira, sem a vibração de um abalo, derivando impertubavelmente na normalidade sua existência complexa, quando faltavam poucos minutos para que se cerrassem quarenta anos de literatura gloriosa...
Neste momento, precisamente ao enunciar-se este juízo desalentado, ouviram-se umas tímidas pancadas na porta principal da entrada.
Abriram-na. Apareceu um desconhecido: um adolescente , de 16 a 18 anos no máximo. Peguntaram-lhe o nome. Declarou ser desnecessário dizê-lo: ninguém ali o conhecia ; não conhecia, por sua vez, ninguém; não conhecia o próprio dono da casa, a não ser pela leitura de seus livros, que o encantavam. Por isto ao ler nos jornais da tarde que o escritor se achava em estado gravíssimo tivera o pensamento de visitá-lo. Relutara contra essa idéia, não tendo quem o apresentasse: mas não lográ-la vencê-la. Que o desculpassem, portanto. Se não lhe era dado ver o enfermo, dessem-lhe ao menos notícias certas do seu estado.
E o ânimo juvenil - vindo da noite - foi conduzido ao quarto do doente.
Chegou. Não disse uma palavra. Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre; beijou-a num belo gesto de carinho filial. Aconchegou-o depois por algum tempo ao peito. E sem dizer palavra, saiu.
À porta José Veríssimo perguntou-lhe o nome. Disse-lho.
Mas deve ficar anônimo. Qualquer que seja o destino dessa criança, ela nunca mais subirá tanto na vida. Naquele momento o seu coração bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo - no meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis - aquele menino foi o maior homem de sua Terra.
Ele saiu - e houve na sala há pouco invadida de desalentos uma transfiguração.
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É Euclides da Cunha quem narra os últimos instantes de Machado de Assis, em 29 de setembro de 1908. Em narrativa apaixonada e plena de beleza vernacular, o autor de Os Sertões equivoca-se num ponto: o rapazola anônimo foi mais além na vida. Adulto, tornou-se Mário Pedrosa, líder comunista considerado entre os nossos mais importantes críticos literários.
2 comentários:
Bom dia, Oliver:
e Mário Pedrosa não cumpriu parte do vaticiniu pois foi um brasileiro enorme. Mas cumprir a outra, de sê-lo.
E foi até, depois, tio de Geraldo Vandré! E foi companheiro de jornada de Cláudio Abramo. Enfim, revelou-se o adulto que aquele menino prometia ser. É claro que no caso de Vandré, foi acidente parental...rsrsrs...mas as outras escolhas, não.
Bom encontrar a referência a ele. Agradeço sinceramente.
Entupidos que estamos de mediocridades, às vezes esquecemos que o Brasil já produziu Mários Pedrosas. E lembrar isso faz a esperança voltar a ocupar espaço no ar poluído dos Dudus.
Abraços.
Não sabia do parentesco entre Vandré e Mario Pedrosa. Obrigado pelo comentário, Bia. Como bem você ressaltou, a história de Mário Pedrosa espanta os miasmas do oportunismo, e desnuda a mesquinhez destes tempos.
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