quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Ensaio sobre a Cegueira

No monumental livro do português José Saramago, recentemente transformado em filme por Fernando Meirelles, uma epidemia de cegueira toma conta de uma cidade inteira. À medida que mais pessoas vão sendo contaminadas, a limitação física faz aflorar o que nelas há de pior. O mal possui uma característica esdrúxula: a cegueira que atinge a todos é branca.

Saramago bem que poderia ter ambientado seu romance em Belém do Pará. Afinal, parece que vivemos em uma eterna cegueira branca. As autoridades constituídas são o principal grupo de risco desta moléstia.

Leio nos jornais de hoje que o GEPROC, grupo especial de repressão ao crime organizado encabeçado pelo Ministério Público Estadual e constituído de instâncias do sistema de segurança pública e do fisco, estouraram (como adoram dizer os jornalistas policiais) uma central de jogo de bicho que, estima-se, arrecadava cerca de 1 milhão de reais ao dia, somente na região metropolitana. O imóvel onde foram apreendidas máquinas, dinheiro, armas e munição ficava em um bairro central da cidade, na travessa do Chaco. Vejo e ouço falar desta sigla, Parazão, e de outras menos conhecidas, desde minha adolescência.

Não há como se surpreender com a existência e o tamanho destas atividades. Há anos, qualquer pessoa que goste de futebol e tenha o mau costume de ouvir qualquer das rádios AM de Belém, como eu, sabe que às 12:30 e às 18:30 horas, diariamente, a programação esportiva é interrompida para que se cante o resultado da zooteca. Sem disfarces, sem subterfúgios: o jogo do bicho é patrocinador de todos os programas esportivos da terra.

Ande pelas ruas e verá, em várias esquinas, pequenas bancas, com uma pessoa sentada, anotando talonários de jogo. Ande um pouco mais e se deparará, sob placas de apelo chamativo e gosto duvidoso, com casas lotéricas de jogo do bicho. Tudo às claras, sem que ninguém esconda a cara, ao entrar ou sair, e sem que qualquer apontador se preocupe em disfarçar o que ali está fazendo.

Assim como é evidente a presença do bicho na sociedade local, sem incômodo das autoridades, é também escancarada a venda de produtos piratas. A avenida Presidente Vargas é o eldorado dos camelôs e todos vendem produtos piratas. Próximas à Seccional do Comércio, à Receita Federal, à vista de qualquer transeunte, as bancas de DVDs e CDs oferecem os títulos mais recentes da indústria cinematográfica, o show mais novo de Victor & Léo, o último CD da Britney Spears. Nada é legítimo; tudo é ilegal.

Diante do mercado de São Braz ou na Doca de Souza Franco, qualquer motorista que pare no sinal será abordado por um vendedor ambulante, oferecendo mais produtos piratas.

Evidentemente, não sou só eu o abordado. Promotores de Justiça, procuradores da República, juízes e policiais federais, civis e militares também o são. As autoridades sabem onde encontrar a ilegalidade; nem precisam procurar muito: a vizinhança sabe, o pedestre sabe, o motorista de táxi que faz ponto próximo sabe. Sabe que é crime, sabe quem é o criminoso e sabe onde ele mora e onde trabalha. E a autoridade, mais que ninguém, sabe de tudo isso.

Mas, como os cegos de Saramago, só vêem um branco à sua frente. Até que algo, ou alguém, lhes desperte o sentido.

3 comentários:

Anônimo disse...

Nome do post também poderia ser:"De olhos bem abertos"
Parabéns Francisco .
Aqui em Sampa temos um bairro comercial talvez o mais forte da America Latina em que SABIDAMENTE , 90% dos produtos vendidos são falsificados , subfaturados ou pirateados o "acordo" é tácito o logista , camelô diz que é legal , a gente faz que acredita e todos compramos mas fazer o que afinal do outro lado da cidade no paraiso do consumo chique a proporção é a mesma inclusive com processos fiscais rolando e todo mundo comprando.E no final das contas o argumento é interessante e "válido" pois com a aplicação dos impostos incidentes na importação e seus custos operacionais qualquer produto importado dobra de preço ao ser nacionalizado.Então vamos a fraude:reforma tributária pra que????
Abraços
Tadeu

Anônimo disse...

Desculpa Francisco , comí bola : logista não pelo amor de Deus : lojista.Nem o Colegio Santo Antonio deu jeito no meu analfabetismo.rsrsrsr
Tadeu

Francisco Rocha Junior disse...

Tens razão, Tadeu. Essa lógica do cinismo, tão bem comentada por ti, é a materialização do nosso chamado "jeitinho". E assim segue o país.
Abração.