Andando pela cidade, você se depara com vistosos outdoors, nos quais jovens sorridentes ladeiam a mensagem: "O kit escolar já é realidade no Pará". Apesar de que já existe gente demais vergastando o governo do Estado por conta desse assunto, e com razão, minha condição de professor me leva a um outro tipo de angústia, que preciso externar.
Refiro-me ao fato de que os governos – todos eles – neste país têm essa mania detestável de reduzir investimentos sociais a aspectos estritamente materiais (fornecer alguma coisa), sem qualquer preocupação com os estruturais (definição de políticas, desde o curto até o longo prazo, capazes de efetivamente modificar a realidade).
Todos os elementos componentes do tal kit escolar (apesar do anglicismo, usarei a expressão sedimentada pelo governo, já assimilada por todos) são úteis. Camisas do uniforme, livro didático, agenda e mochila com a logomarca do atual governo. Penso, contudo, que apenas o livro didático é indispensável, porque é com ele que se acompanham as aulas, segue-se o programa de estudo e realizam-se tarefas. Agenda é útil, mas podemos passar sem ela. Eu, p. ex., jamais usei agenda escolar e não acho que isso me tenha prejudicado em nada. Quanto ao uniforme, embora endosse as diversas razões pelas quais deve ser usado, a começar por colocar os alunos em condições de igualdade visual, ninguém aprende mais ou menos por causa da roupa.
Por conseguinte, antes de gastar tanto dinheiro com o kit, deveria o governo esclarecer o que será concretamente feito, daqui por diante, com a educação pública. O que se pretende fazer acerca da qualificação dos professores e sua justa remuneração. Como faremos para que os docentes possam cursar pós-graduação, inclusive doutorado, sem abandonar depois a rede pública em busca de um emprego verdadeiramente rentável e recompensador. Como poderão conhecer experiências exemplares, que possam ser implantadas no Pará. Como terão acesso a livros, a um computador e à Internet. Como evitar que precisem lecionar em um monte de escolas diferentes, distantes umas das outras, sem possuir um meio de transporte próprio, ou pelo menos um sistema de transporte público decente. Como eles e seus alunos serão protegidos da violência nas escolas e da insegurança urbana. Como o ensino levará em consideração as peculiaridades de cada região. Como cumprirá seu papel de difusor da cidadania.
Faço uma comparação com a segurança pública. Quando há investimentos, é sempre a mesma coisa: entregamos dezenas de viaturas, armas e coletes à prova de balas. Tudo isso é essencial, sem dúvida. Mas não se discute uma política remuneratória capaz de desestimular a corrupção arraigada nas polícias, nem a qualificação dos policiais. Não se lhes dá condições de moradia, de convivência familiar, de crescimento pessoal. Os militares sequer recebem promoções, notadamente os da raia miúda. O trabalho das corregedorias é completamente desacreditado. A ação comunitária da polícia é mais discurso que efetividade. Entra ano, sai ano, as viaturas apodrecem e os policiais continuam gordos, defasados e sem perspectiva de melhora. Não pode dar certo.
No final, se o governo faz tanto espetáculo em torno do kit escolar, é porque essa é sua principal ação no plano da educação. E se assim é...
Lamentemos o presente e receemos o futuro. Perdão pelo tom sombrio, mas foi como me senti ao ver os tais outdoors.
3 comentários:
O governo ganha mais com a propaganda do que os estudantes com educação, não é verdade?
Governo cínico.
Yúdice,
Vc disse tudo.
E disse-o bem.
Nada a acrescentar.
Tudo a lamentar.
E , o pior , é que não se tem perspectiva nenhuma de mudança, nem a curto , médio ou longo prazo, né não ? Pelo menos a julgar pelo que se anuncia po futuro proximo...
Façamos a catarse, então!
Desde que descobriram ou reinventaram a propaganda governamental, Fred, a vergonha chegou ao máximo. Acho absurdo o que se gasta com essa rubrica. Deveria ser sumariamente proibido gastar acima de um patamar bem baixinho. Para que outdoors mencionando esse kit? Se a medida fosse de fato impactante sobre a educação, ela seria percebida e elogiada, mesmo sem propaganda alguma.
Nada vejo de melhora, Francisco. Parece que os publicitários assumiram o governo do país faz tempo. E vá falar deles, para ver o que acontece!
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