“Há muitos anos eu penso e repito
que o melhor amigo do homem não é o cão
e sim o carro.”
Homenagem de Scylla Lage Neto ao Gemada (in memorian), amigos de 1997 a 2009.
Não sou flamengo, não tenho uma nega chamada Tereza, mas tenho um fusca enferrujado e um violão, sem corda, guardado no quarto do meu filho mais velho. Do violão quase nada tenho para falar, mas do fusca azul-calcinha...
Para começar. O Ajalce, velho parceiro de itinerário, costuma dizer que nunca andará no meu fusca. Não é o risco de colisão, ou capotagem, mas de adquirir tétano, de tanta ferrugem.
Entre outras tantas histórias, a primeira ocorreu numa certa manhã ensolarada de domingo, dia ideal para se passear de fusca em Belém, apesar do calor escalpelante. Neste dia tentei adentrar ao estacionamento de um dos hospitais em que trabalho. Quando acionei o porteiro pedindo que tirasse o cone que impedia o carro de estacionar entre os médicos, ele me acena negativamente. Certamente havia olhado e reprovado o velho carro modelo 85 com para-lama descascado, para-choque enferrujado e com pintura desperolizada, tipo “azul-calcinha”. Eu insisti propositadamente, mas ele me alegou que, se eu ocupasse a vaga de outro médico com aquele carro, os quais muitos deles eram “enjoados”, poderia perder o emprego. O jovem mancebo insistia em olhar para o fusca sem me direcionar o olhar, e eu insisti disfarçadamente, até que ele percebeu a minha indolência e perguntou:
- O senhor é médico? E no platô inspiratório seguinte ele mesmo respondeu...
- Ah! É o doutor Roger... mas ele ficou diferente dentro deste fusca!
Descobri que o jovem trabalhava sob uma pressão imensa para não permitir que pessoas estranhas, com fuscas estranhos, ocupassem a vaga de médicos estranhamente metidos a “enjoados”.
Também fui barrado em mais dois hospitais. Num deles, o público, quando o porteiro percebeu que cometeria a gafe, eis que os seus colegas de trabalho intercedem e gritam, Nãããããão!!! Deixa esse entraaaaaar. É o fusca do Dr. Roger. Dia de Domingo ele não vem com o importado!
Nessa eu descobri que só se importam com você, quando se tem carro novo ou importado.
Aos sábados pela tarde, quando vou jogar minha pelada lá na estrada 40 horas, também costumo ir de fusca. Junto com Pedrinho – o filho que guarda o violão -, apanho meu amigo Neto no meio do caminho e sigo destino. Nos semáforos, na espera do verde, sempre existem flanelinhas dispostos a estender a mão para saborear uma moedinha, mas quando se está de fusca, eles sempre passam direto, e sequer olham para você. Raramente tentam lavar o vidro do carro. Sinto-me desprezado pelos flanelinhas quando ando de fusca enferrujado. Digo que me sinto discriminado. O meu parceiro só faz rir. De fato ele acha o maior barato olhar a vida dos flanelinhas de dentro de uma espelunca de mais de 25 anos.
Mas a melhor aconteceu na Pedro Álvares Cabral com a Júlio César, onde está prestes a nascer um viaduto. Um flanelinha havia simpatizado com o meu fusca e resolveu lavar o vidro. Eu não me opus, até porque me assustei com este momento de raridade urbana. Seria um insano? Um desesperado por uma moeda a ponto de apostar no fusca a sua última carga de água com sabão? Como o vidro é pequeno, o esguio e arisco flanelinha acabou muito rápido. Provavelmente percebeu que, por mais que não ganhasse moeda, certamente não perderia tanto tempo, nem tanto material. Então eu dei-lhe um real. Merecido! Este merecia! Ele olhou, olhou, olhou... e gritou. Égua! O cara do fusca me deu um real! Milagre!!!
Assim descobriu ele, certamente, que, de onde não se espera nada, pode até não vir nada, mas pode vir uma moeda de um real. E isso pode fazer tamanha diferença na sua alegria. É a filosofia de quem vive na rua.
Se meu fusca falasse, ele certamente confirmaria tudo o que estou contando. Nada é lenda. É a pura verdade destilada com a surpresa de se ver, através dos vidros de um fusca azul-calcinha, que existe um esfacelo entre o conceito e o preconceito, independentemente para onde você esteja apontando o seu farol.
*Texto de Roger Normando, médico, cirurgião de tórax, peladeiro e amigo antigo deste poster. Portanto, vade retro safardanas!
17 comentários:
Mas, Barretto, acabaste de chegar da odarice e já estás desse jeito?!
Como, Itajaí?
Ora, esse "vade retro safardanas" não me parece exatamente um convite para tomar um sorvete...
A propósito, ainda que no blogue seja informado que existem 2 comentários sobre o post, estranhamente a tua réplica não aparece quando abro o popup. Apenas sei dela por conta do aviso por email.
Ah! Sim.
Vc se lembra do último texto que o Roger publicou? Nele, tivemos que gritar um "passa" em um cachorro que lá compareceu apenas para tentar desmoralizar o Roger. Anonimamente, é claro, o "Bidu" tentava ofender meu amigo. O que não permiti, é claro. Daí, a ressalva já está feita, para que o meliante entenda que cachorro por aqui, a gente grita logo:
-Passa! Passa!
Hehe
Sim. É exatamente sobre este problema que me refiro no post "Problemas em comentários no Blogger".
Mas parece que normalizou. Vejamos.
Hahahaha, nem lembrava. Passa, pirento!
Grande Roger, figura e boa praça.
Este Fusca, que já até andei de carona, já tem história pelaí.
Sou testemunha da transformação sofrida pelo Roger dentro do Fusca.
Na primeira vez em que o vi, eu não sabia nem sequer desconfiava da existência da azul criatura, e, num dia de domingo enxerguei um homem igualzinho ao Roger, num fusca, descendo a Mauriti.
Só pude concluir que se tratava do "verdadeiro" Roger quando o fusca entrou no Porto Dias.
Adorei a postagem e agradeço a citação do finado "Gemada", meu amigo tão fiel quanto o Fusca azul será do Roger Normando.
Um grande abraço.
Uma crônica deliciosa. Teu amigo Roger escreve muito bem, com um estilo leve e divertido, e seria muito bom que pudéssemos lê-lo com mais frequência. Ele nos emprestaria outros textos?
Ia fazer um cometário mas o Yúdice escreveu o que eu ia escrever.o cabra é bom
Abs
Tadeu
Ele é meio arredio, Yúdice. E já perdi a conta do número de vezes que peço colaborações. Mas mesmo assim, vez por outra ele me surpreende com alguma coisa muito interessante. É melhor assim.
Abs
Caríssimo Scylla. Este texto é para voce, mesmo. Fiz in memorian, porque sei o quanto gostavas do gemada.
Em homenagem ao Itajaí, velho amigo, chamarei o meu fusca de pirento. Pirento blue, para afastar o mal-olhado dos caninos belemitas e extra-terrestres também.
Ao Yúdice: O Barreto tem razão sobre o que discorre, mas confesso, estou melhorando. Recentemente eu publiquei uma e agora mais essa. Acho que vou fazer o seguinte, vou mandar para vocês um texto do João Pedro, meu filho. Ele escreve melhor do que eu. Bem melhor. Recentemente ele fez uma redação e a professora reprovou. Devolveu e pediu-lhe que refizesse o texto. O guri não tinha sido claro nas suas idéias, segundo a "fessora". Ele tem 16 anos, mas escreve desde os 14. Aguardem.
O Lafayete acabou de passar por mim lá na SOL. Vruuuuuuum!!!
Abraços.
Roger
Pirento Blue - gostei, Roger.
Tive um C3 azul escuro que atendia pela alcunha de JABOTA BLUES.
Obrigado e um grande abraço.
Serei padrinho com mucho gusto! Que os céus e todas as ruas abençoem o PiB!
Eu já tive um gol, modelo antigo, azul-calcinha também. Não chegou a ser batizado, como o Gemada. O pobrezinho morreu pagão, coitado...
Atenção galera. Vem aí o Flanando num fusca...II. Esperem. Deixa ele sair da oficina.
Roger
Já estou com o segundo texto prontinho. Só quero autorização do conselho superior para publicar.
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