Roger Normando
Vi, pela janela do trem, no caminho para Berlim, num piscar de olhos, uma paisagem que jamais imaginaria existir por aquelas bandas: uma partida de futebol. Um dos times vestia amarelo e tinha uma faixa horizontal vermelha. O outro não deu para gravar. Tomei aquilo como um soco na minha massa cinzenta. Foi uma paisagem no pé de uma montanha que pensei existir somente na vida brasileira. Se disser aos meus amigos peladeiros que isso existe por aqui e que pode ser encontrada nas tardes de um domingo azul qualquer, digo: eles não acreditarão. Vários carros no pé da serra me fazem supor que também havia torcida sem arquibancada. Era minha visão, algo contorcida e fugaz...
Pronto...! Distorcida a imagem, agora confirmo: aquilo era uma “pelada”, sim.
Talvez o espanto tenha me tomado conta e me jogado no contra-pé de uma outra paisagem que parece começar a ficar como lembrança no quarto escuro da minha frágil memória: Praga. Que cidade! Que luz na minha memória. Que paisagem que o homem foi capaz de criar! Com essa fotografia anestesiante não se pode esperar que, passado trinta minutos da estação, seja vista uma partida de futebol. Por isso o nocaute na visão que criei sobre Praga. Estava eu sob a embriaguez que Praga nos destina.
A partir de agora, portanto, deixemos de lado a partida da estação e a partida de futebol e entremos na Capital Tcheca, fincada no centro da Europa e com uma história tão viva quanto a derme clara-quase-transparente de seus habitantes, descendentes em grande parte de Judeus ortodoxos. Se quiserem comprovar a presença semita, basta visitar o bairro com o próprio nome e comprovar, nas ruas e no cemitério judeu, o amontoado de lápides. Dá-nos uma sensação de que a terra está escassa até para os mortos, dada tamanha sangreira jorrada pelos canhões de Hitler.
Mas o lado funesto da história de Praga não se resume aos efeitos nocivos do século 20, o mais sangrento da história. A cidade já enterrou seus mortos e vive agora sob luz da própria luz. De noite a cidade mais parece um sonho. Todos os homens estão alegres e vestem-se junto com a cidade. Põe uma fantasia que não se tem como explorar cada história. É melhor que ela fique na imaginação de cada um e permaneça como o fósforo aceso de sua visita. As luzes cintilam fortes e contínuas. As únicas que piscam são os reflexos das lâmpadas sobre o Rio Vltava, que contorna a cidade num anatômico formato de joelho. Algumas roupas nas portas lembram velhos cavaleiros, mas hoje os seus cavalos foram transformados em calhambeques brilhantes motorizados flanando pelas estreitas ruas, em cuja placa lê-se a alcunha: PRAHA. Nas calçadas vende-se de tudo, com qualidade, ao peso das coroas do Rei Carlos. Não existe arte tosca, até mesmo porque Franz Kafka não permitiria, diante da metamorfose tão drástica que a humanidade insiste em caracterizar. O teatro Black light não é negro. Tem as cores das caminhadas de Praga pelo mundo revolucionário de drogas, sexo e rock’n roll. Os cantos não são cantos, são vielas de ruas onde tudo vai dar no centro da praça da cidade velha, onde se houve as badaladas e marionetes de 12 apóstolos a cada hora do dia e... da noite também. Amém.
Se Mozart por lá passou e nos apresentou a ópera Dom Giovani, por lá ficou uma história da música, jamais esquecida pelos mais afortunados e intelectuais, que não se cansam das filas quando se trata de uma boa liturgia da palavra e do belo sopro da voz humana.
Certamente, a semente que Carlos plantou na pedra de Praga floresceu em forma de tijolos, sabedoria e melodia, tal como a vizinha Viena, no rumo oeste.
Eu não sei se Praga vem de Deus, ou do reflexo dele diante do espelho do conhecimento, da beleza e da arte, sem a sombra do horrendo. Ou se veio do homem, pela junção de milhares de centelha de seu reflexo, e comportou-se como um Big-bang, ou melhor, foi um caso do acaso. Depois vieram as riquezas dos detalhes, daí foi quando percebemos que somos apenas um cisco no campo visual de Praga; uma letra tosca nas premências de Kafta; a nota atravessada na ópera de Mozart ou, por fim, quando somos o nada diante de tudo que está a brilhar nesta cidade que não dorme... e nem pisca.
6 comentários:
Roger,
Essa cidade é uma das que tenho em mira visitar. E tudo nela me atrai, a história, os monumentos, a quase incomunicabilidade pela escassez de quem compreenda o inglês... Estudo-a como um colecionador de borboletas.
Abs.
Roger, como um apaixonado por Praga que sou, posso apenas unir a minha voz à sua numa ovação a esta cidade singular.
Não foi à toa que Hitler a poupou ao ordenar que nenhuma bomba sobre Praga caísse.
Praga é única.
Um abraço.
Itajaí.
"O segredo é não correr atrás das borboletas... É cuidar do jardim para que elas venham até você"".
Mário Quintana
Scylla,
Tive a oportunidade de visitar o museu do comunismo de Praga, onde deveriam contar a história da invasão do exército de Hitler, mas tive uma grande decepção, ou melhor, felicidade... O museu é pobre de conteúdo. Por sua vez as cidades vizinhas foram devastadas. Até hoje ainda se vê restos de canhões da 2a guerra pelas vias férreas. Pilsener, isto mesmo, onde nasceu a cerveja, foi a primeira delas, mas Praga foi pouco atingida.
Outro abraço para você.
Carlos,
Adorei o post. Estou com viagem marcada para outubro e passarei pro Praga, além de Viena e Budapeste.
Mal posso esperar!
Boa tarde, Luiza.
Agradeço sua visita. Mas o texto, apesar de postado por mim, foi feito por um de nossos colaboradores eventuais, Roger Normando. Está assinado logo na parte superior. Ele está lendo os comentários e poderá ele mesmo agradecê-la.
Abs
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