sábado, 10 de julho de 2010

Serra e a Ampliação do Bolsa Família

Tem piedade, oh Satan, de minha atroz miséria!
( Charles Baudelaire. Poema CXLV de As Flores do Mal)

O jurista Tertuliano (155-222 DC) registrou para a posteridade uma advertência útil, ainda que mais de mil anos tenham passado. Esse religioso cartaginês certa vez argumentou que as vespas também faziam favos (Faciunt favos et vespae) tanto quanto uma das correntes primitivas do cristianismo, os marcionistas, fundavam igrejas. Com simplicidade e precisão didática, Tertuliano demonstrava que, superada a ilusão das aparências, o que distinguia os favos das vespas e o das abelhas é que os primeiros são vazios.
Ocorreu-me essa lembrança por conta de ler na imprensa que o candidato Serra da coligação PSDB/DEM andar afirmando que ampliará o Bolsa Família, programa que é a menina dos olhos do governo de Luis Inácio Lula da Silva e, consequentemente, de Dilma Roussef candidata petista na sucessão presidencial. Claro que face ao inegável sucesso desse programa de transferência de renda, Serra não ficaria indiferente, nem seria louco de dizer que iria encerrá-lo sob o risco de sequer eleger-se representante de classe num improvável retorno aos bancos escolares, que o habilitasse bacharel em Economia por respeito às leis brasileiras que regulamentam o exercício profissional.
Logo, apenas lhe restou dizer o que disse, ainda que nada garanta ao eleitor que uma vez eleito o candidato Serra, este não venha a proceder como o atual prefeito de Belém que prometeu respeitar o Bolsa Escola de Edmilson Rodrigues e, depois de empossado, crau, liquidou o programa num piscar de olhos. A comparação deve claro guardar justa proporção, pois seria até desumano de minha parte buscar similitudes entre José Serra e Duciomar Costa. Concedo assim ao líder tucano um quase esquálido benefício da dúvida.
Mas não dúvida que o beneficie quanto a programática partidária, de inspiração ideológica aliançada com o neoliberalismo, que Serra construiu de parceria com Fernando Henrique Cardoso durante 8 anos de governo, e que, conforme disse o primeiro, no que respeita ao convencimento para saciar a sede privatista, foi o primeiro quem o animou e o convenceu. Nesse sentido os governos da dupla FHC/Serra são inegavelmente coerentes com o pensamento conservador neoliberal, que sem titubeios orienta-lhes a fúria contra tudo que simboliza um governo que protege direitos sociais por meio de políticas públicas exercidas pelo Estado e controladas pela sociedade.
Como foram realizadas então as políticas de assistência social no governo demo-tucano de FHC/Serra?
Para responder a essa questão transcreverei aqui a conclusão final do capítulo Contra-Reforma e Resistência , inserida na seção Seguridade Social, do livro A Era FHC e o Governo Lula: transição? (Inesc, 2004). O capítulo foi assinado pela professora Sonia Fleury, da Fundação Getúlio Vargas, autoridade reconhecida nacional e internacionalmente na avaliação crítica de políticas sociais:
"Nos dois governos de FHC - de 1995 a 2002 -, alcançou preponderância a orientação política liberal, que impôs uma nova agenda de reformas cuja proposta, na área da Seguridade Social, opõe-se ao padrão constitucional brasileiro conformado em 1988.
Um balanço geral dos diferentes programas assistenciais existentes durante o período do governo FHC nos permite concluir que (...) a orientação preponderante nesse período representou uma estratégia de contra-reforma, incidindo sobre as três áreas que a compõem. Por ter dado primazia ao ajuste fiscal e ao pagamento da dívida, o governo subtraiu recursos da seguridade social que permitiriam a ampliação de benefícios e coberturas, e dificultou as condições de acesso aos benefícios.
Por não se comprometer com a concepção integral da proposta para a seguridade social, permitiu a vinculação de recursos à áreas específicas, em detrimento do Orçamento da Seguridade Social. Favoreceu entidades privadas lucrativas e organizações não-governamentais, em detrimento da burocracia e dos orgãos públicos e colegiados prestadores de serviços sociais.
Não conseguiu, no entanto, retirar da Constituição o conceito de Seguridade Social, cujos princípios seguiram sendo as bandeiras de instituições e atores comprometidos com a busca da universalização dos direitos sociais, a força motriz da resistência às tentativas de desmontagem dessa conquista que representa um novo nível de sociabilidade na história brasileira."

NOTAS.
1. Os grifos são meus.
2. Sônia Fleury é psicóloga, especialista em Medicina Social, com Mestrado em Sociologia e Doutorado em Ciência Política. Não é petista, nem pertence a outros partidos políticos.


Nenhum comentário: