terça-feira, 3 de maio de 2011

A onda

Dominados que somos pela indústria cinematográfica norteamericana, a maioria de nós raramente se permite uma incursão pelas produções de outros países. No entanto, como neles a ideia de indústria é menos difundida, você tem maiores possibilidades de encontrar obras de singular valor artístico ou que nos proporcionam reflexões mais instigantes. Mesmo alguém como eu, que aprecia o que está fora do lugar comum, acabo atingido por esse marasmo, na correria do cotidiano. Foi assim que tomei conhecimento do filme A onda (Die Welle, dir. Dennis Gansel, Alemanha, 2008) através de minha esposa que, por sua vez, encontrou-o casualmente na programação da TV por assinatura. Interessamo-nos pela sinopse e vimos neste final de semana.
Eu ia escrever sobre o filme, mas acabei me deparando com uma excelente resenha escrita pelo jornalista Ronaldo D'Arcadia, que transcrevo abaixo:

Baseado em uma história real, “A Onda” nos apresenta fatos sólidos de como uma ideologia pode impregnar valores e costumes de pessoas normais. Para aqueles que pensavam que nunca poderia haver outro absurdo como o nazismo, este filme nós ajuda a ficar de olhos bem abertos.


Em 1967, em Palo Alto Califórnia, o professor de história Ron Jones fez um experimento com seus alunos. Ele impôs uma ambientação do nazismo em sua classe, tudo seguia os padrões do partido. O projeto durou uma semana e causou diversos problemas. Anos depois, baseado na história de Jones, Morthon Rhue produziu o livro de ficção “A Onda”, no qual o filme de Dennis Gansel se baseia, mas o diretor também tomou suas liberdades poéticas com o tema, adaptando os eventos para dias atuais e transportando tudo para a Alemanha, onde o livro de Rhue é leitura obrigatória em suas escolas.
No filme, Rainer Wenger (interpretado pelo ator Jürgen Vogel) é uma pessoa de personalidade forte, e também ótimo professor. Logo no inicio, acompanhando os créditos, já podemos perceber toda rebeldia contida no individuo, que, enquanto dirige, canta freneticamente a clássica “Rock and Roll High School” dos Ramones. Somos apresentados a Wenger neste caminho para escola, onde ele iniciará um pequeno projeto, em que cada professor aborda formas de governos em suas classes. Tendo a duração de apenas uma semana, este trabalho especial é finalizado na sexta feira, quando vídeos são feitos, palestras e argumentos são expostos, e o tema é discutido, visando assim ampliar a compreensão dos alunos sobre os assuntos em questão. Para Wenger sobra os governos autocratas, como o nazismo e o fascismo. Ele então, meio de supetão, começa a já citada experiência, que termina de forma trágica.
É muito interessante analisarmos um fato ocorrido nos EUA ser adaptado para o cinema pelos alemães. Claramente, devemos relembrar a licença poética do diretor Gansel – que é também roteirista, juntamente com o novelista Todd Strasser -, ele transportou toda personalidade da juventude alemã, e também o ensino e costumes de seu povo de forma brilhante para o tema.
O fascismo, nazismo, ou “A Onda” - como eles se autodenominam -, se apresenta de forma envolvente, e isso é mostrado através do olhar dos jovens em questão, que vão se afeiçoando ao sistema. Apenas os pontos positivos são descobertos de primeira mão. Os jovens se mostram mais obedientes em casa, melhoram a postura física em sala de aula, o que possibilita uma melhor circulação sanguínea e assim uma melhor pronuncia de sentenças, sentenças essas que devem ser curtas e coesas, e proferidas de pé, e por ai vai. Tudo isso ocorre de forma natural no filme, nada de gritaria, o projeto é respeitado pelos alunos, que entram na onda. E com essa união os excluídos fazem amizades, são protegidos pelos seus iguais contra o inimigo comum, nesse caso, a classe que pegou o tema anarquia, que fica no andar de baixo ao deles. Os populares se sentem invencíveis e por ai vai novamente. Aparentemente tudo que os rebeldes querem é disciplina e em um mundo tão vazio de significados, fazer parte de alguma coisa pode ser perigosamente tentador.
Eles então se tornam reais, criam logo tipo, myspace, websites, adotam uniforme, um cumprimento padrão, tudo a pedido do professor, que inicialmente encarava de forma ingênua a transformação que estava causando nos jovens, sem perceber também que aquilo estava afetando seu comportamento. Mas afinal qual o problema? Os pais dos garotos teceram elogios já nos primeiros dias, a diretoria apoiava à didática. E tudo ocorre muito rápido. Em uma semana A Onda nasce e morre.
Um dos personagens centrais do filme é Marco, interpretado por Max Riemelt. Marco é o soldado alemão perfeito. Atleta, não é burro, mas não faz questão de ser inteligente, ele namora a bela Karo, vivida pela jovem atriz Jennifer Ulrich. Karo é uma das mais inteligentes da turma, mas é uma menina que traz problemas pessoais, típicos de jovens tentando se encontrar. Ela apresenta um comportamento sutilmente egocêntrico, com ares de superioridade, e com o inicio da Onda, onde todos se saem bem, ela acaba sendo deslocada do grupo. Percebendo que aquilo não é uma coisa normal ela se coloca contra a Onda, e todos os sentimentos se misturam, principalmente para o público. Todos sabem que os “ismos” são prejudicais, todos sabem que Karo está certa, mas sua personalidade superior, unida a ingenuidade dos outros alunos, nos faz escolher lados, despertando ai o fascista em todos nós. A relação de Karo e Ulrich é o termômetro para a platéia. É através deles que vemos como as coisas vão se afastando de uma brincadeira para algo sério.
Sendo talvez o mais simbólico personagem do filme, Tim Stoltefuss, interpretado por Frederick Lau, é a vitima “dos sistemas". Garoto reprimido, vê na onda o significado de sua vida, e começa a desparafusar de vez, coisa que acontece às pencas por ai (entenda-se Neo Nazistas, Skin Heads). Mas no caso de Tim o drama é maior. Tudo que ele queria era fazer parte de um grupo, e isso A Onda lhe deu. Nada poderia lhe tirar essa sensação.
Todos os atores são excelentes, dês do time principal, até os coadjuvantes. O diretor conseguiu tirar tudo deles. A entrega foi máxima, diria até perturbadora, pois sem credibilidade, tudo seria em vão. Gansel acerta em praticamente tudo na direção do filme. Fotografia impecável, cenas bem estruturadas, texto profundo e bem argumentado. A edição é contemporânea, com elementos pop, muitas cores. O vermelho que Karo resiste a usar diante do branco adotado por todos é simbólico e contrastante. Bonito de se ver.
No final, “A Onda” apresenta os primeiros passos na construção de algo imperfeito por natureza, pois apesar da coesão como um grupo, apesar de todas as melhorias percebidas por pais e mestres (superficialmente), existe aquela fresta no sistema, a célula que muda tudo, e está célula é a intolerância, é a impossibilidade de A Onda viver sem o ódio e a segregação. O principal motivo do professor Wenger no filme- assim como Jones na vida real-, de iniciar este processo perigoso, foi devido aos argumentos dos alunos que diziam não conseguir entender como tantos alemães foram coadjuvantes de algo tão terrível. A obra nos mostra que ideologias como essa estão acima do povo, e que, no final, todos acabam inocentados pela mesma, mas não esquecidos.
Mas os últimos minutos do longa são com certeza seu ponto forte. O ator Jürgen Vogel se despe de forma inacreditável na cena em questão. Enquanto acompanhamos os diálogos, parecemos ir despertando de um torpor, juntamente com todos os personagens, e se você não despertar, está com problemas.

Fiquei muito impressionado com o filme. Primeiro porque, atualmente, tudo que vejo sobre a adolescência me faz gelar pelo fato de ser pai. Mas sobretudo pela constatação de que o desejo de se sentir incluído, de encontrar um rumo na vida, de superar carências e frustrações torna as pessoas altamente vulneráveis à manipulação e ao transbordamento dos próprios demônios.
Uma coisa que me chamou muito a atenção, no filme, é que os jovens sempre falam que suas atitudes se justificam "pela causa", mas em momento algum se diz que causa é essa. O próprio professor, ao propor a experiência, esclarece que eles estão criando um modelo de autocracia, mas não diz que objetivos teria, afora o objetivo específico da aprendizagem do tema. Fica, assim, a minha aflição: que diabo de causa aqueles jovens achavam ter? Isso me perturbou mais do que a própria violência que acaba acontecendo.
Enfim, não adianta escrever pergaminhos: veja o filme.

5 comentários:

Scylla Lage Neto disse...

Yúdice, eu já fiquei impressionado com a resenha e com os seus comentários.
A micro-história de cada um e a somatória das histórias pessoais de uma pequena comunidade formam outra micro-história que se agrega com outras e mais outras, gerando assim um naco maior de um pequeno fragmento da história da humanidade.
A potencialização das idéias, mesmo aquelas desprovidas de qualquer conteúdo real, é algo extremente perigoso.
O tempo que vivi na Alemanha me ensinou que a sombra da xenofobia e do preconceito é algo perene.
Tentarei encontrar o filme, com brevidade.
Um abraço e obrigado pela dica.

Carlos Barretto  disse...

Vi o filme, e achei-o no mínimo, educativo. Muitos "direitistas úteis" deveriam vê-lo.
Mas, também de direção/produção alemã, abordando outro viés político, me encantei com "A Fita Branca" (Dass Weisse Band) de Michael Haneke. Ele me foi indicado, meio que fortuitamente pelo nosso colega FRJ. Sou agradecido a ele para sempre, pela extraordinária indicação.
Se ainda não o viram, aqui tem uma sinopse boa, que não vai lhes contar o final do filme.
http://cinema10.com.br/filme/a-fita-branca

Curiosamente, falamos de dois filmes alemães, cuja nação no passado, manchou sua reputação com os horrores do nazismo.

Yúdice Andrade disse...

Scylla, parece que o filme ainda está passando na Sky.

Barretto, estou me devendo "A fita branca", mas não posso esquecer o adorável "Adeus, Lênin", que apesar de ser um filme levíssimo, basicamente uma comédia, também permite boas reflexões.
Estudei por quatro anos a cultura e o idioma alemão, por isso sei que aquele povo se sente muito responsável pelos horrores do nazismo. É um trauma que não morre, que não se cura e que maltrata os alemães tanto quanto os descendentes das vítimas.
Nesse ponto, há uma interessante passagem em "A Onda": logo no primeiro dia da aula, quando o professor começa a falar, um aluno protesta contra o discurso. Ele diz que todos já sabem sobre as responsabilidades oriundas do nazismo e revela uma intensa ojeriza a ter que falar disso de novo. Ele não nega o fato: apenas me pareceu que preferia tirar esse piso de cima de si.

Luiza Montenegro Duarte disse...

O filme é realmente ótimo, daqueles que nos deixam dias "matutando". Deveríamos mesmo dar mais atenção a outras produções.
Já que o assunto é cinema alemão, sugiro "A Vida dos Outros", que trata de um oficial da Stasi encarregado de escutas clandestinas no apartamento de pessoas suspeitas de conspirar contra o governo.
Dentre os suspeitos está um casal influente na cena cultural. O agente, através das escutas, se sensibiliza com o romance, passando a camuflar seus relatórios, para protegê-los.
No fim, parece que os alemães também tem coração. :)

Yúdice Andrade disse...

Devidamente anotada a nova sugestão, Luiza. Gostei da sinopse.
No mais, sim, os alemães têm coração, no qual cabem simpatia e muita culpa.