quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Sem vestígios

Um semblante acima de qualquer suspeita e passos seguros entre ruas semi-iluminadas e estreitas, vigiadas por moribundos à porta de casarões que se desfazem. O vento tímido sacode os cabelos já desalinhados com os afazeres do dia que se esvai. A bolsa é levemente encoberta pelo xale improvisado, calculadamente, nas mãos. Ela segue certeira e errante e insaciável. A grade só estava encostada. Restos de luz apontam o piso antigo e velho, e ainda finca uma escada de madeira, marcada por pequenas brechas de descuido. O cheiro da umidade anuncia o porvir e ela abre um leve sorriso, sem pressa. Ele a aguarda nos altos. Com uma das mãos, se apoia na parede, acima do corpo. Com a outra, bafeja o cigarro. Ele também é discreto, como ela gosta. Os olhos dele se amiúdam no trago e encaram os olhos graúdos dela. Um cheiro no pescoço doce e quente; braços envoltos na cintura. Ela desliza porta a dentro. Um samba triste os convida à boemia, já derramada pelo apartamento. Copos com sobras de doses de qualquer coisa etílica. Carteiras de cigarro amarrotadas e cinzeiros cheios de baganas. Jornais, livros, chaves, fio dental, prato e cartão, papéis de contas a pagar, discos sem capa decoram mesa, sofá, chão... ainda havia o principal: meia garrafa de uma cachaça competente, a mesma que ela trouxe cheia na última noite em que o visitou. Cor de caramelo. Alguém a gastou antes e isso lhe atraía. Não se deram conta do quanto beberam, do quanto conversaram. O álcool lhe autorizou a se despir e restaram no corpo dela somente as roupas íntimas. Passos trôpegos até a janela, numa performance perfeita. Cuspiu fumaça sobre a praça vazia, e ele gostava de assistir sua desenvoltura, interrompendo-a com carícias e conversas roucas. A água fria do chuveiro lavou restos de mais uma noite. Deixou cair um pequeno caderno de notas no piso de taco corrido e se foi. Sem dizer adeus.