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Paraense, sou ateu. Filosoficamente, materialista. Mas, acima de tudo, sou devoto de Nossa Senhora de Nazaré. Este último atributo, no mês de outubro, transcende os demais. É inerente ao ser paraense. Durante algum tempo, no auge do obscurantismo ideológico da juventude, ainda tentei renegar minha devoção, porém, romântico inveterado, há muito deixei de remar contra a maré. Mergulhei de cabeça no parensismo: açaí, tacacá, Ver-o-peso, marés, rios e ilhas, canoas e torço nu. E isso tudo, à imagem do próprio rio amazonas, como em um caudal, deságua em Belém no segundo domingo de outubro.
A colossal procissão do Círio, com seu milhões de romeiros, começa na Catedral da Sé e termina cinco ou seis quilômetros depois na Basílica de Nazaré. Mas um olhar atento vai além, vê que a romaria começa em cada furo, rio, igarapé, ilha ou beiradão. Canoas, ubás, caxiris, barcos a motor, velas ou remo. Começa nas palafitas e nos barrancos. Nos quintais das cidades, no porco cevado, no patarrão, no ralar da mandioca, no tipiti e no moer da folha de maniva, matéria-prima para o almoço do Círio – maniçoba e pato no tucupi. Farto e generoso. Para a família, os amigos e quem mais chegar.
O Círio começa no vestido de chita com babados, decote comportado e comprimento abaixo dos joelhos. Calça e camisa de manga comprida, novas, as únicas mudas de roupas compradas no ano, mas estreadas no Dia da Festa. Sapatos, sandálias, baixas ou de salto.
Tênis? Nenhum. Para acompanhar o Círio de Nazaré se vai descalço. Naturalmente. Começa com banho-de-cheiro. Vinde-cá, priprioca, patichouli, orisa, pau-cheiroso, chama, pau-rosa, catinga-de-mulata. E se vem de todos os cantos do Estado do Pará que, em outubro, se transmuda para além das fronteiras geopolíticas. Invade o Maranhão, o Amazonas, o Amapá. É como se fosse o Estado de Nossa Senhora de Nazaré. Esse é o núcleo central tangido pelas águas, senhora de todos os destinos. Essa é a procissão cabana de antes da estrada, do asfalto, do ônibus, do avião, do arranha-céu, do apartamento, do estacionamento proibido. Esta nova tribo do fast food também é bem-vinda. Por adesão, é claro. No Manto da Virgem e no coração cabano há sempre espaço de sobra. Apenas há que aderir ao espírito secular do Círio. Ficar mundiado pelo bom e pelo bem. Sentir-se igual. Caminhar descalço.
É por tudo isso, pelo peso dessa enorme bagagem da cultura paraense, que todos os anos, quando passa a Berlinda da Santa, este velho comunista se emociona e chora.
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André Costa Nunes, 67 anos (agora beirando os 70), escritor.----------------------
3 comentários:
Emocionante...
Também achei Valéria. Bom Círio prá você!
Marise, eu sou suspeito por ser fã do "velho comunista", mas não posso deixar de exclamar a beleza do texto.
Como bem disse Valéria Normando, a emoção sobra.
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