“Até um monstro antigo precisa de um nome.
Nomear uma doença é descrever certa
condição do sofrimento –
é um ato literário antes de ser um ato
médico’
Siddhartha Mukherjje, médico e escritor
indiano, 2011.
“A gente
morre é para provar que viveu” discursou Guimarães Rosa em sua posse na
Academia Brasileira de Letras. Não demorou muito e o autor de “Grande Sertão:
Veredas” sucumbiu com um infarto no coração. Não houve tempo para assistência
médica, tampouco para degustar a láurea da cadeira. Por fora do verbo roseano, porém
bem dentro da ciência, existem doenças letais que já se encontram bem
definidas, explicadas desde a sua gênese. Nas demais, a ciência espicha o
pescoço para desvendar seus mistérios: o câncer, transfigurado pela imagem do caranguejo,
é uma delas.
A morte, curso inexorável da vida, tece seu final a
partir do embrião, e a tendência, hoje, é de morrermos mais da velhice e menos
de infarto, guerra e infecção, como ocorreu no passado da Peste negra, Gripe
espanhola e Tuberculose. Agora surge o Câncer. No passado quase não se diagnosticava,
mas hoje já é a segunda causa de morte, em consonância, por estarmos vivendo
mais. Efetivamente é doença apavorante.
Apavora por que a ciência já andou pra frente, pra trás,
pro lado; foi do nada pra lugar nenhum e zanzou pela medicina tal como o andar
do caranguejo - paradoxalmente, a imagem literária dessa doença-monstro. Permanecemos
empacados no mangue como se fosse areia movediça.
Aos poucos fomos entendendo por que tudo isso
ocorreu. Foram gastos estratosféricos em pesquisa e resultados pífios. O homem
já pisou na lua, aprontou tantas guerras, construiu milhares de navios e, mesmo
assim, como se andando na esteira rolante, não saiu do lugar. De sorte não cansou,
só pegou fôlego: caminhar no mangue até enlameia, mas dá sustância. Talvez por
isso a ciência tenha concentrado força: não aceita, busca, investiga, esperneia,
pesquisa, gasta tubos de dólares e enquanto enterra seus filhos com esse Alien
cuspindo caroço para tudo que é lugar.
Mas um cisco está sendo soprado do olho da ciência
- e do meu também. Paresque o câncer tem origem nos genes: Genética - que é
diferente de hereditariedade. Soube pela leitura de “O imperador de todos os
males - uma biografia do Câncer”, livro do indiano Siddhartha Mukherjee. Literatura
premiada. Diz que descobrimos muito tarde as raízes do Câncer e, ao longo da
jornada ribombamos, ainda muito cedo, balas de canhões em forma de coquetéis para
a busca da cura, sem apontar para os genes. Não é livro destinado para médico,
apesar de ter sido escrito por um e, talvez por isso, fosse maravilhoso se os
médicos lessem. Mudou minha maneira de pensar sobre essa doença. Ousaria em
dizer ao autor outro nome para o livro: O andar do caranguejo.
Siddartha vive nos EUA, e transformou-se em best-seller
porque mergulhou no mangue insólito da história soturna do câncer da mesma
maneira que o nosso Guimarães Rosa trotou na via sertaneja, a espiar a morte
apenas como a estrofe final da poesia da vida.
No meio onde vivem os crustáceos que simbolizam o
Câncer, o Siddartha recolheu mais escombros que pérolas - de uma de uma doença
que tem deixado marcas indeléveis na sociedade. Tudo isso por não entender o
seu habitat: o núcleo das células. Os genes. O genoma.
”O câncer é de fato um fardo
construído em nosso genoma. O contra-peso de chumbo das nossas aspirações de
imortalidade.”
O livro foi premio Pulitzer de literatura 2011.
Estou no final de suas 600 páginas. Tenho esperanças, muitas, mesmo sabendo que
se gastou um mar de dinheiro numa megaviagem até marte e se negligenciou a
microviagem até o núcleo da célula. A ciência paga caro por esse desleixo.
Ainda volto a falar deles: o livro e o monstro, que começa a mudar de feição
pelo cinzel da ciência. Vale à pena falar, apesar do tema rastejante, pois o
futuro é promissor, esperançoso. Vale sim, se a alma não for pequena e não estiver
penando pelas veredas desse redemoinho.
5 comentários:
Eu que já perdi "um" que tanto eu amava, e que já vi tantos outros irem a viagem, entendo o andar do caranguejo. É curioso os caminhos que a ciência toma para compreender os fatos. Me lembro que quando a AIDS apareceu foram tomadas algumas medidas que acabaram por criminalizar identidades sociais. Hoje, estamos em outros caminhos. Muito difícil este caminho no qual você está mergulhado e muitos outros - mas nós agradecemos profundamento pelo esforço. Valeu Roger: bela crônica, a nos ensinar que as ciências e as artes não são campos estanques do conhecimento. Como escreveu Lúcio Flávio Pinto: Nós merecemos viver!
Talvez por ser genético, e nao hereditário, o câncer atormenta toda e qualquer classe sócio-econômica indistintamente. Daí realmente me parece a janela da esperança.
Quando penso que em pleno século XXI ainda morrem pessoas de Lepra (nao deviam ter mudado o nome para Hanseniase, fica eufêmico, nao "agride" os intelectuais). Essa doença milenar que já há muito se podia ter erradicado. Ms a lepra se concentra nas populações de baixíssima renda, inclusive a própria Índia tem seu índice nas alturas.
Juntando os pontos de dois pólos extremos, mas nao isolados, esta inquieta cidadã vê o mercantilismo da Ciência.
Mas, se a alma nao é pequena, tenhamos esperança.
Drummond já havia percebido que o homem vai à lua, desce na lua,pisa na lua, mas nao consegue fazer uma simples viagem de reflexão para dentro de suas próprias idéias.
Esse texto me veio num momento que acabo de descobrir que minha mãe, que é de Peixes, agora terá um crustáceo a "afofar" seu chão até nao se sabe quando.
Se me permitem, Marise e Silvina, estender o assunto poesia-ciência - assaz, um belo par -, neste momento estou em Terrassa, cidadezinha milenar próxima a Barcelona, avaliando o peso, ou melhor, o andar deste crustáceo pela árvore respiratória. Essa caminhada até aqui me fez escrever este texto e refletir com "nosotros" quão ainda temos que caminhar... Ainda nos resta, por alguns anos, acreditar nas indicações cirúrgicas na fase precoce e ter esperança na quimioterapia para os casos mais avançados, ou mesmo a ciombinação de tratamentos.
Quanto vale a Nave Espacial? Qual o custo de um Laser letal? Tanque, homens, minas, bombas... Quantas guerras pagaremos prá Terra ter um dia algum momento mansidão? Já cruzamos o céu além do som, mergulhamos fendas abissais. Ir além da lua, fomos, inda longe mais iremos... mas quando chegaremos a tocar os corações? Dudu Neves.
Bons estudos e boas reflexões Roger!
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